— Vais estar aqui, quando eu voltar? – perguntei, aflorando a conversa
que não queria ter. Porque precisava dela, transparência plana e descomplicada,
contraponto oco à densidade das minhas angústias.
— Onde é que havia de estar? Esta casa é minha.
Senti a aceleração irreprimível da cadência final. Não consegui ser
agradável, não se pode modificar as notas da partitura.
— Não digas parvoíces, percebeste muito bem – repliquei, áspero. Ela
merecia ser preservada. – Quero saber se vais estar à minha espera.
— Porque é que perguntas? Foi assim que perdeste as outras? – o ataque
desferido abruptamente, o repentismo da ignorância mascarando uma crueldade
ingénua. A Rita era genuína mesmo quando tentava dissimular-se.
— Mais ou menos – respondi, tateando margens de fuga a uma discussão
estéril.
— Se calhar tens um jeito especial para escolheres mulheres que te
deixam quando as ofendes.
Afastei-me carregando a mala, senti o peso acrescentado da falta do fato
de banho, a densa discussão a partir dela. Talvez pudesse comprar um no duty free shop do aeroporto, ou já em
Praga, antes do concerto, o importante era não falhar a piscina, na manhã
seguinte. Transpus a porta aberta do quarto, tirei o porta-fatos do bengaleiro.
Olhei para a Rita do corredor, o túnel de todos os sintomas de solidão, uma
distância já imensurável até à pura intimidade dela, perdidas as noites de
respirações afinadas, a harmonia orquestrada dos corpos a uma lonjura
indizível. Os êxtases prolongados como sinfonias acorrendo à memória como meras
recordações sepultadas nos abismos da solidão sem cura. A não ser ela própria,
inexorável.
— Pelo menos sempre me pouparam a discussões – fui ainda capaz de dizer.
Abri a porta da rua, reconheci o meu porta-chaves na fechadura,
retirei-o.
— Fica com as chaves – atirei-lho, no gesto assertivo de remate do
último compasso. – Se eu voltar, bato à porta. Se não abrires, cá me
arranjarei.
Saí para o patamar de todas as minhas relações rompidas, as palavras
diferentes na mesma frase de todas as despedidas. Não olhei para trás, saudades
são fraquezas paralisantes. Premi o botão do elevador, acendi a luz do patamar,
vi a figura dela colada à ombreira da porta. Não lhe ouvi os passos, diria que
ela se transportou de modo incorpóreo, apenas no desejo de me reter. No seu
rosto lívido havia uma súplica vitimizada, o olhar oblíquo era um convite
desarmado, o corpo hirto de cariátide dizia uma expectativa sem desgaste.
— Abel… – o timbre colorido não parecia brotar da sua figura exaurida,
antes do lusco-fusco escancarado da casa, correntes de ar impedindo a
concentração das ideias.
— Sim? – o meu desejo de reagir adiantou-se à minha decisão de
controlá-lo.
— Porque é que tu não gozas a vida?
— Porque é que tu não gozas a vida?
(Fotografia de Carlos Alberto Cavaco)