domingo, 26 de novembro de 2017

Ficção XX - Algo a dizer (a partir de «A Chave Perdida»)

— Eu estava na clínica, a meio de uma tarefa que não queria, quando me deram o recado – a voz dela era grave e espessa, colou-se a mim como massa consistente. – Quase voei para o local, não sei quanto tempo demorei a chegar, pareceu-me uma eternidade, antes de chegar já sabia. Saí do carro e procurei alguém, um dos paramédicos era jovem, falámos, disse-me… Disse-me… Depois disse-me que podia ir na ambulância, eu percebi que já não havia nada a fazer e disse que sim, ainda olhei em volta antes de entrar.
Aquilo não era a Sónia, aquilo era a Sónia desde há quatro meses, quando tinha deixado de ser a Sónia que eu amava, porque deixara de ser a Sónia que me amava. Aquela fala entrecortada, aquelas falhas de injeção no discurso, ela estava naquilo que dizia, mas de algum modo fora dela própria e por isso eu senti que a verdade que se erguia entre nós era outra.
— Tu estavas de pé, no passeio – continuou. – Tinhas o olhar perdido e uma expressão vazia, como se o teu rosto tivesse perdido vida. Seguravas ostensivamente o telemóvel na mão, como um criminoso que não larga a arma do crime e havia uma mulher polícia a teu lado a falar contigo e eu não quis saber de mais nada.
Será que ela viu?, pensei enquanto a ouvia. Será que ela percebeu o número estampado no visor do telemóvel, o número que ocupou todo o aparelho, que encheu a minha mão, que se espalhou por mim adentro numa interrogação de depósito rompido até à explosão da cegueira que me fez desviar os olhos da Sara no momento em que?...
Talvez ainda possível a conversa que eu precisava de ter. Mas não.
— Entrei para a ambulância – a voz grave e espessa pareceu afundar-se mais ainda, eu já estava de pé mas mais mergulhado do que quando de joelhos. – Foi nessa altura, vi o carro parado do outro lado da rua. A imagem do condutor, não retive a imagem do condutor mas, desde aí, em todos os meus pesadelos desde aí vislumbro um rosto de mulher jovem, muito jovem e bonita, que passa por mim deslizando, com uma expressão misteriosa, simultaneamente aterrada e serena, como se fosse apanhada por uma noção de cumprimento trágico de um destino. E como se fugisse diante dessa surpresa. Com um sorriso.
Já de pé, como naquele dia, de pé mas partido num destroço de viatura acidentada, todo o meu corpo no peso da mão que parecia segurar o telemóvel como naquele dia, o número a escorrer do visor do aparelho, o número que o ocupava todo, que enchia a minha mão, que se espalhava por mim adentro numa interrogação de depósito rompido até à explosão da cegueira que me fez desviar os olhos da Sara no momento em que. O número…
Mas não.
— Fechei os olhos quando a porta da ambulância se fechou. E depois só me lembro… só me lembro… E depois não me lembro de mais nada.
O gesto incompleto da mão dela dizia-me que havia muito mais por dizer nas palavras que me deixara ouvir, como um painel de mostradores avariados que não revela o verdadeiro estado dos mecanismos. Ficámos frente a frente, não me apercebi do momento em que assim nos devolvemos à presença um do outro, a escuridão da sala envolveu-nos numa distância longa, parecia que tínhamos algo a dizer, mas.


(Fotografia de Carlos Alberto Cavaco)

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