Estava a olhar para mim como se me sugasse as entranhas, vidrou-me os
olhos e secou-me todas as mucosas, anulou-me naquela contração magnética,
aquele vácuo de tudo em mim. Percebi que ia falar, decerto convocaria uma
qualquer vibração das profundezas da terra, tal era o poder da sua presença
estática. Fiquei na expectativa de um oráculo, uma frase profunda e imensa como
aquele olhar, que eu guardaria para sempre no meu espírito sedento. E falou,
uma voz sonora, encorpada e fria, ressumando indiferença:
— A rodela de limão põe-se antes da água tónica.
E afastou-se numa pirueta elegante como o voo de um condor, abrindo
espaço à passagem da bolha desinfetada em que se movia, o gelo que tilintava no
copo decerto mais quente do que o resíduo petrificado em que congelei, a pensar
apenas em que ponto das operações é que tinha posto o raio da rodela de limão
dentro do copo…
Voltou cerca de um quarto de hora depois, abeirou-se de mim no mesmo
passo cheio de mundo, olhou-me para dentro com a mesma força, o corpo todo
carregado no olhar perfurante. E pediu-me outro gin tónico. Mas aquele hiato de
tempo devolvera-me, recuperei da secura, novamente insuflada da irreverência de
bater a porta, descomprometida no vazio de nunca. Novamente curiosa como nunca
soube não ser, provocadora como sempre gostei de ter sido. Peguei num copo
vazio, estendi-lho, inclinei a cabeça e olhei-o levemente de lado, resistindo a
deixar-me despenhar de novo no seu abismo. E disse-lhe:
— Ensine-me, por favor.
O copo tremia-me na mão, a mão tremia-me no braço, o braço abalava-me o
corpo que me parecia deslocar o próprio eixo da Terra. Ele segurou o olhar em
mim, sorriu-me num trejeito demolidor, senti que me dera uma bofetada.
Roubou-me o copo numa carícia, preparou a bebida em silêncio com uma elegância
de artista. Depois, em jeito de brinde, ergueu o copo no espaço entre nós e eu
senti um muro derrubar-se.
— A essência do limão deve libertar-se diretamente no gin – explicou, a
mesma voz cheia agora aquecida num tom de lição estudada. – A água tónica vem
depois, para diluir a concentração e suavizar o paladar. Se assim não for, isto
confunde-se com qualquer mistura reles.
Sorri-lhe uma resposta de circunstância, ele fitou as garrafas sobre o
balcão, referiu-se às bebidas como se falasse de obras de arte, depois olhou em
volta e comentou a decoração artística da sala como se se tratasse de
aperitivos. Fascinou-me o modo como tornava diferentes todas as coisas que
mencionava, parecendo olhá-las de alguma maneira que eu não conseguia. Outra
coisa.
Pouco
depois seguiu o grupo para a sala de jantar, diluiu-se nele, como se tivesse
picado a bolha de invulgaridade para se acomodar entre iguais. Percebi, naquela
distância, o que me separava do seu mundo, tanto quanto senti crescer a
curiosidade, a sedução. O desejo dele.
(Fotografia de Carlos Alberto Cavaco)
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