É porventura a mais bela composição instrumental de sempre.
Partilho-a com os meus votos de que, em 2014, a humanidade consiga, em todas as suas relações, atingir um semelhante grau de harmonia, conjugação e Belo.
Feliz Ano Novo!
terça-feira, 31 de dezembro de 2013
domingo, 29 de dezembro de 2013
Texto vigésimo
Luigi Pirandello, ou o teatro em estado puro.
Pela depuração dos diálogos, em que a redução a um
minimalismo de efeitos reforça a complexidade de elaboração dos processos.
Pirandello ensina-nos que, em teatro, o mais importante está no que não é dito.
E isso é um desafio.
Pela desmontagem formal que nos faz assistir, mais
do que à ilusão erguida sobre o palco, ao mecanismo construtor dessa mesma
ilusão. Pirandello desvaloriza o mero deslumbramento perante a obra criada e
mostra-nos que, em teatro, o mais importante está na reflexão sobre a
capacidade humana de criá-la. E isso é uma paixão.
Mas, principalmente, pela profundidade de abordagem
da identidade humana, que nos remete, de cada vez, ao “odor da nossa própria
vida” do qual já não damos conta. Pirandello recorda-nos que, em teatro, o mais
importante é ferir de morte as personagens num delicado patíbulo de flagelação,
para que elas não morram em vida brutalmente imaculadas como figuras de cera. E
isso é uma purificação.
Vem isto a propósito da peça em um ato O Homem da Flor na Boca, que Luigi
Pirandello escreveu na década de vinte (estreou em 1923 e foi editada em 1926)
e da qual me atrevi a fazer a dramaturgia para uma versão que estará em cena
entre 9 e 18 de janeiro, na Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul. Trata-se
de um texto sublime, adaptado de um conto anterior (Caffé notturno, de 1918, posteriormente reeditado com o título La morte addosso), no qual dois homens
se confrontam um com o outro, cada um consigo próprio, ambos com a vida e a
morte.
Encontra-se aqui o melhor de Pirandello, o teatro
em estado puro. Nada mais importa do que o ser humano radiografado no texto;
nada mais importa do que as suas contradições, personificadas nas duas figuras
em cena; nada mais importa do que o sabor da vida e o pavor da morte, presentes
de forma simultaneamente ciente e incógnita, inquietante. A peça vale pelo que
acontece durante a representação, mas vale também (mais ainda?...) pelo que
fica depois na consciência de quem assiste. O bilhete pago não compra apenas um
espetáculo a que se vai assistir, mas adquire por junto uma angústia que se
leva para casa no fim. Não é isso a arte: um objeto criado por alguém que
(re)cria algo nos outros?...
Luigi Pirandello, ou o teatro em estado puro. O
melhor é ir ver.
Siga o evento no Facebook em:
sexta-feira, 27 de dezembro de 2013
Texto décimo nono
Eis o meu Presépio: o linho da pureza íntima, a
serapilheira da precária condição humana, a palha do mundo transitório, onde
tudo vale quanto dura. Invisíveis, os arames das convicções e projetos erguem
as figuras da Sagrada Família, que a chama da inspiração divina ilumina e
aquece. A festa de fitas, bolas e luzes coloridas fica para trás, em segundo plano. E, nas figuras, os rostos que faltam são os nossos.
De que outras metáforas precisamos para celebrarmos a Vida? Para crermos em
nós próprios, para confiarmos uns nos outros?
Boas Festas!
domingo, 22 de dezembro de 2013
Conversando... sobre o Natal
Quero desejar a todos os amigos e leitores deste blogue um Feliz Natal. Não apenas um natal alegre de risadas aparentes, mas um Natal verdadeiramente Feliz de aconchegos interiores, de comoções essenciais. De calor e simplicidade. De contemplação e abertura.
Que este seja um tempo em que consigamos viver a grande metáfora que esta quadra nos ensina: a fragilidade íntima floresce na aspereza exterior, o conteúdo preenche a forma, a plenitude inunda o vazio. As vozes de mero ruído calam-se para escutar o silêncio eloquente, a mensagem sobrepõe-se ao discurso, a Palavra suplanta a verborreia. Deus habita no homem.
Então, o mundo transforma-se: a aspereza exterior suaviza-se na intimidade frágil, a forma embeleza-se pelo conteúdo, o vazio plenifica-se. A eloquência corporiza-se nas vozes, o discurso transmite a mensagem, a verborreia organiza-se em Palavra. O homem torna-se Deus.
E a criação faz sentido. E ninguém fica de fora, porque todos somos homens, porque todos somos Deus que se faz homem. Porque todos somos Criação.
Feliz Natal!
Que este seja um tempo em que consigamos viver a grande metáfora que esta quadra nos ensina: a fragilidade íntima floresce na aspereza exterior, o conteúdo preenche a forma, a plenitude inunda o vazio. As vozes de mero ruído calam-se para escutar o silêncio eloquente, a mensagem sobrepõe-se ao discurso, a Palavra suplanta a verborreia. Deus habita no homem.
Então, o mundo transforma-se: a aspereza exterior suaviza-se na intimidade frágil, a forma embeleza-se pelo conteúdo, o vazio plenifica-se. A eloquência corporiza-se nas vozes, o discurso transmite a mensagem, a verborreia organiza-se em Palavra. O homem torna-se Deus.
E a criação faz sentido. E ninguém fica de fora, porque todos somos homens, porque todos somos Deus que se faz homem. Porque todos somos Criação.
Feliz Natal!
terça-feira, 10 de dezembro de 2013
Ficção VIII - "Dê à chave!"
O
rapaz endireitou-se, afastou-se ligeiramente do motor sobre o qual se debruçava
e onde lia com a desenvoltura de um letrado nas entrelinhas dos compêndios.
Desviou-se um pouco para o lado do capot
levantado, para ver o pára-brisas atrás do qual o cliente, no banco do
condutor, se afundava numa ansiedade incontrolada, agarrado ao volante como um
náufrago a não importa o quê.
“Dê
à chave, faz favor”, disse o rapaz, enquanto esfregava as mãos sujas de óleo ao
desperdício mais sujo que as limpava.
O
cliente era um homem maduro, engravatado de funções elevadas num colarinho
engomado de graus académicos. Obedeceu, no gesto vagamente devoto de quem
confia num milagre que já não espera. Rodou a chave na ignição, o motor pareceu
estrebuchar, queixou-se num soluço de expetoração presa.
“Já
quis”, comentou o rapaz, “Insista, dê à chave”.
De
novo a chave rodou, sucessivamente como contas de um cordão de reza a passar
nos dedos. Até que um ruído mais profundo e consistente anunciou que o motor
entrara em funcionamento, evoluindo do ronco áspero inicial para um
estremecimento suave e regular.
O
cliente engravatado saiu do automóvel, tentando dissolver o nervosismo no modo
como levava a mão ao bolso interior do casaco, em gesto de sacar uma arma. Mas
mais atrapalhado.
“Muito
obrigado”, disse, a carteira já na mão para exprimir em notas bancárias a
gratidão que não sabia dizer, “Estou sem tempo, percebe? Tome para si e muito
obrigado. Logo havia de me acontecer uma avaria destas aqui nesta terra de
ninguém. E eu sem tempo, percebe? Muito obrigado”.
O
rapaz, tão insensível às notas que lhe vieram parar às mãos como ao discurso de
rabo na boca do cliente, quedou-se a olhá-lo. Viu-o entrar novamente no
automóvel, arrancar num frenesim de pressa e desaparecer da sua vista tão
definitivamente como se lhe esvaía do horizonte o curso de engenharia aeroespacial
com que inadvertidamente sonhara e do qual desaguava no anónimo desenrasque de
motores daquela oficina de província. E sorriu à lembrança do cliente
engravatado, sentindo-se maior do que ele numa superioridade que não era
orgulho, mas consciência da necessidade: mesmo um doutor engomado precisa de
alguém que, limpando as mãos ao desperdício mais sujo do que elas, o ajude a
dar à chave.
terça-feira, 3 de dezembro de 2013
Sexta alegoria
A minha dor é tão grande
Tão grande de sofrer
Que por mil léguas que eu ande
Não fujo a este doer
A minha dor é tão dura
Tão dura de chorar
Que desço o rio à procura
De um mar onde a sossegar
A minha dor é tão triste
Tão triste de viver
Que tudo, tudo o que existe
Conspira-me até morrer
Porém
Se esta dor que me traz vivo
E cativo se apagasse
Porém
Se este grito que me arrasta
E me agasta se calasse
Que seria de mim?
Teria chegado o fim…
terça-feira, 26 de novembro de 2013
Texto décimo oitavo
Noventa
e Três é tido como o último
romance de Victor Hugo. Publicado em 1874, é uma lição de escrita de um romance
histórico. O magistral retrato da França revolucionária não pode deixar de nos
envolver: o fervor republicano sobreposto ao ideal monárquico taciturno, o
Terror revolucionário, gerado nas entranhas do povo, de armas em riste contra a
resistência aristocrática orquestrada do exterior.
A revolta da Vendeia é o pano de fundo sobre o qual
Victor Hugo deixa correr a história do marquês de Lantenac, nobre condutor dos
camponeses dispostos a morrer por uma monarquia que os reduz à miséria, e do
seu sobrinho-neto Gauvain, o idealista revolucionário disposto a chacinar a
população em nome da liberdade que pretende oferecer-lhe. À volta da intriga,
tão intervenientes como espetadores, surgem as personagens históricas do
período da Convenção, das quais inevitavelmente se destacam Marat, Danton e
Robespierre, a páginas tantas protagonistas de um diálogo verdadeiramente
sublime.
Mas o melhor da obra está guardado para o fim: o
Livro Sexto e o Livro Sétimo da Terceira Parte constituem um hino à dignidade
humana de que ninguém menos que o maior vulto da literatura seria capaz. É
preciso ler aquelas páginas para (re)descobrir o valor intrínseco e profundo do
ser humano, para entender que as opções radicais da honra elevam o homem bem
acima das desprezíveis manobras de sobrevivência a todo o custo. É preciso
devorar aquela escrita e fechar enfim o livro para acender a cínica lanterna de
Diógenes e recomeçar, neste cinzento nevoeiro de relativismo moral dos nossos
tempos, a busca do Homem nos rostos dos pigmeus que até de si próprios se
escondem.
Noventa e Três
é tido como o último romance de Victor Hugo. Publicado em 1874, é uma lição de
escrita de um romance histórico. É uma lição de escrita de um romance. É uma
lição de escrita. É uma lição. É.
terça-feira, 19 de novembro de 2013
Conversando...
Aqui fica, a todos os amigos e seguidores deste blogue, o convite para estarem presentes no próximo sábado, às 19.15 horas, na Biblioteca Municipal Palácio Galveias, em Lisboa.
Para além de podermos conversar sobre o livro Nós, Vida, será uma oportunidade para um contacto pessoal que muito apreciarei.
Para além de podermos conversar sobre o livro Nós, Vida, será uma oportunidade para um contacto pessoal que muito apreciarei.
terça-feira, 12 de novembro de 2013
Quinta alegoria
Vocês não sabem a vida
Como eu já sonhei a morte
Nunca antes de a ver perdida
Senti a vida tão forte
Vivi silêncios de monge
Morei fundo no deserto
Mas tudo me era tão longe
Quanto eu julgava estar perto
Peregrinei monte e rio
Incensei longes anseios
Mas acabei no vazio
Dos gestos outrora cheios
E já chorando na estrada
Abraçado ao pranto mudo
Ergui os olhos do nada
E contemplei-te, meu tudo
Vocês não sabem a vida
Como eu já provei a morte
Mas foi por vê-la perdida
Que sinto a vida tão forte!
terça-feira, 5 de novembro de 2013
Ficção VII - Começou a escrever
Estava só. Olhou em volta, ao redor das quatro
paredes, e sentiu o olhar doer-lhe como um choro na noite. Foi à janela,
derramou o olhar, quis ver mais longe, encontrar um pouco fora o que dentro lhe
sobrava. Mas foi em vão, porque percebeu que não podia pedir ao deserto que se
metamorfoseasse em bosque frondoso. Não porque o não fosse, mas apenas porque
ele não conseguia vê-lo.
Fechou os olhos, mas as
imagens dele próprio demais continuavam a bailar-lhe dentro como borboletas
sinistras. E pouco importava se lhe evocavam o mundo real cujas observações ele
colecionava, ou se eram mesmo o reflexo e o prolongamento desse mundo. A
verdade é que, dentro dele, existiam muito mais, com muito maior intensidade e
era aí que lhe doíam. E era assim que se tornavam uma verdade que não existia lá
fora.
Abriu de novo os olhos,
mas já não derramou o olhar. Correu as cortinas, virou as costas ao bosque
frondoso que não conseguia ver e recolheu-se, mergulhou no deserto de si
próprio em busca de um qualquer oásis de estar ali, que não conhecia. Deitou-se,
cerrou o olhar sem se dar conta de ter baixado as pálpebras. Quis dormir, mas o
pavor dos pesadelos de ontem retinha-o num lugar de vigília que o martirizava
de lembranças. Resignou-se a sonhar acordado, que era o seu irremediável
destino. Desejou ser simples, amaldiçoou a sua natural inata complexidade, ou a
consciência dela, que é a mesma coisa. Invejou os pobres de espírito, os
néscios e os ignorantes, que dormem tranquilos noite após noite, sem culpa
nenhuma. Detestou-se por se sentir condenado por todas as vicissitudes que o
atropelavam e de que só ele era culpado, porque as percebia.
Sentiu a luta dentro de si, envolveu-se nela um
pouco, mais uma vez. Por fim, respirou fundo… e desistiu. Viver é difícil
demais, quando se tem tanta vida dentro. Registou mentalmente aquele dia em que
abdicava de si próprio, em que renunciava ao seu deserto como se enfim
reconhecesse a impossibilidade do oásis, em que assumia viver apenas nos
outros. A data da sua morte.
E
começou a escrever.
terça-feira, 29 de outubro de 2013
Quarta alegoria
O abalo
O sufoco
O nó na garganta
O soco no estômago
A vertigem da largada
As amarras receosas
A onda que arrasta as teimosias de âncora
O antegozo da aventura
A saudade antecipada
O passo decisivo
O abraço da partida que não se desprende
Aperta-se mais nos olhares que se afastam
O choro do adeus alegre
Espumante derramado na sagração da viagem
E depois o silêncio
A alegria confusa na dor engolida em seco
O consolo da missão a cumprir-se
O medo da incontornável finitude
A angústia de ser humano.
terça-feira, 22 de outubro de 2013
Texto décimo sétimo
Era de manhã. Cedo, mas ele não sabia precisar a
hora certa. Ainda não usava relógio porque não havia para quê. A decifração do
código hermético do mostrador era, aos quatro anos, uma tarefa transcendente,
algures a meio caminho entre a contemplação e a pesquisa.
Chegou pela mão da mãe, porque esse era um tempo em
que ainda fazia sentido aquele aconchego de uma mão maior envolvendo a sua.
Havia uma porta em arco, solene e robusta, que talvez fosse castanha, mas que
ele apenas recorda na cor verde escura em que foi pintada de novo, anos mais
tarde. A porta estava aberta, porque havia muitos meninos como ele, que
chegavam aconchegados por mãos maiores que envolviam as suas, como certezas
repletas que abafavam os medos apertados que se deixavam conduzir.
Transpondo o umbral, ele notou a penumbra do átrio,
simultaneamente misteriosa e lúgubre. Os outros meninos pararam e ensaiaram um
recuo estarrecido, prontamente combatido pelo puxão firme das mãos maiores que
comandavam sem apelo todos os sobressaltos. Ou talvez não tenha havido recuo
nem puxão nem sobressalto, mas apenas a consciência, da parte dele, de uma
reação distinta quando, soltando a mão do aconchego, sorriu por dentro do seu
rosto inexpressivo e avançou pelo chão de tijoleira até a um banco corrido,
encostado à parede lateral. Sentou-se, porque sabia que vinha para ficar. A mãe
dissera-lho, antes de saírem de casa e, por isso, ele interiorizara o facto com
uma certeza tão absoluta como a noção da sua própria existência. Ou mais ainda.
Os outros meninos permaneciam de pé, junto das mães que procuravam largá-los
das mãos maiores com a mesma repleta certeza com que os tinham agarrado e
trazido até ali.
Ele observava atentamente aquele medo que subia das
mãos largadas para o encolhimento dos rostos. Em alguns deles, esse medo
extravasou em lágrimas mal contidas que ele não percebeu, mas de que
estranhamente se compadeceu. A mãe dirigiu-se a ele e ele viu que os passos de
aproximação eram um movimento de despedida.
“Agora ficas aqui com os outros meninos”, disse a
mãe, “Eu vou-me embora e volto logo à tarde para te vir buscar”.
Ele fez o seu rosto sorrir por fora do seu íntimo
inexpressivo e não disse nada. A docilidade com que se deixara conduzir desde
casa, desde a decisão da mãe, fora já eloquência bastante e nada mais havia a
dizer. Porque ele não considerava a necessidade de resposta que a mãe sentia, a
insegurança que criava nela aquele sorriso vazio com que pretendia confortá-la.
A mãe beijou a imobilidade dele e deu meia volta, engolindo a ânsia de palavras
com que sempre se afastava dele e que ele nunca satisfazia, sem que ela
soubesse porquê. Ou sabendo um porquê que não era o dele, porque o silêncio
que, para ela, era frieza e egoísmo, para ele não passava de um modo de exprimir
a insignificância que sentia relativamente a si próprio.
E ficou na escola.
terça-feira, 15 de outubro de 2013
Ficção VI - Apeteceu-lhe chorar
De
olhos baixos, acocorado na sua envergonhada miséria, sentiu o gotejar das moedas
na palma da mão estendida. A seguir fechou-a num punho cerrado de impotência e
revolta. Só depois ergueu os olhos, a tempo de ver as costas da senhora idosa que
se afastava, no passo ligeiro da consciência aliviada.
Apeteceu-lhe
chorar, derramar as lágrimas do seu grito surdo sobre aquelas moedas que
protegia ciosamente na mão fechada. De olhos marejados, apertou mais o punho e
sentiu, nas pontas dos dedos, o atrito pegajoso incómodo da sujidade que
abominava. E recordou um tempo anterior, em que os mesmos dedos, impecavelmente
limpos, arrumavam livros nas prateleiras num ritual de reverência e ternura. Ou
percorriam levemente as lombadas num fervor especializado, em busca de
satisfazer o pedido de mais um cliente.
Esse
tempo era agora uma memória, uma saudade amarga e feroz: entristecia-o no
orgulho de tê-lo vivido, consumia-o no revivalismo em que o alimentava. A
livraria fechara as portas num ato de rendição à competição acelerada de um
tempo que a sua quietude não sabia acompanhar. Despejado do seu emprego de toda
a vida, ele viu-se, aos quarenta e nove anos, abandonado na esquina do seu
mundo arruinado, condenado a recomeçar sem ponto de partida.
Tentou,
porque a sua alma resistente negou-se a aceitar o afogamento. Mas a verdade é
que o seu corpo já ultrapassara a juventude convencionada para o relançamento
de uma vida de produtividade aceitável. E, apesar de teimosamente insistir,
após vinte meses de recusas foi obrigado a capitular. E resignou-se a estender
a mão, habituada ao toque dos livros, à mendicidade de algumas moedas,
compassivamente partilhadas por outros sobreviventes mais afortunados.
Apeteceu-lhe
chorar, derramar as lágrimas do seu grito surdo sobre aquelas moedas que
protegia ciosamente na mão fechada. Sempre amara os livros e nunca se
preocupara com o dinheiro. Agora, no entanto, sabia que aquelas moedas poderiam
valer-lhe mais que a livraria inteira do seu passado. Porque lhe garantiriam
uma sopa para o jantar que lhe aconchegaria o abandono a que a falência da livraria
o condenara.
E
chorou. As lágrimas gotejaram sobre o seu punho cerrado sobre as moedas
gotejadas. Até que ponto seria ainda capaz de descer?...
terça-feira, 8 de outubro de 2013
Texto décimo sexto
Jogava as damas com o avô desde a infância. Sem o
saber, foi crescendo naquele ritual de aprendizagem da vida. O avô era um homem
repleto, trémulo da doença de Parkinson e da absorção de múltiplas vivências,
um pouco curvado do peso dos anos e do armazenamento de memórias gratificantes.
Nascera no século dezanove, vivera o tempo do regicídio e da República,
assistira às duas guerras mundiais e atravessara o túnel da ditadura. E ainda
haveria de contar a história da revolução dos cravos.
De cada vez que jogavam as damas, o avô inclinava-se
sobre o tabuleiro que um filho trouxera do Brasil e derramava-se sobre ele em
lições de vida. Nas histórias que contava nas entrelinhas das jogadas (as
“mudas”, sempre plenas de intenção), mas também no próprio diálogo estabelecido
sobre o tabuleiro, que aqueles dedos enrugados de sabedoria transformavam em
metáfora de ser. E ele, deixando-se iniciar pelo avô no jogo das damas, sem o
saber crescia por dentro da sua meninice. Aprendia que, no pavimento
quadriculado da vida, há áreas que não podem pisar-se; que é preciso seguir pelos
espaços disponíveis; que a única opção de movimento válida é para a frente; que
se deve sempre buscar companhia no avanço, sem ter medo de enfrentar os
adversários; que há uma meta no extremo oposto daquele donde se parte e que é
preciso superar os obstáculos para atingi-la; que, uma vez aí chegado, tudo
recomeça, que o crescimento no direito a movimentos mais amplos é acompanhado
de uma duplicação do peso a transportar e de uma responsabilidade maior sobre o
tabuleiro. E que o jogo é uma partilha onde a estratégia de sucesso assenta na
atenção ao outro; que a vitória é uma alegria dividida e efémera, o empate é
uma (in)satisfação mútua e a derrota um crescimento a partir dos próprios
erros. Que o melhor de tudo é poder jogar de novo. Ter com quem.
Jogava as damas com o avô desde a infância. Bebeu
sobre o tabuleiro o amor à vida, na delicadeza do toque das pedras redondas, no
recheio deslumbrante das memórias partilhadas, na ternura daquela longevidade
paciente dada ao respeito numa presença desarmada e simples. Quando o avô
morreu, ele tinha vinte anos. Deixou de jogar as damas, depois de mais algumas
partidas casuais com parceiros fortuitos, “mudas” desabitadas em que foi
indiferente ganhar ou perder. Nunca mais lhe apeteceu.
Ainda conserva o tabuleiro que o tio trouxe do
Brasil.
quarta-feira, 2 de outubro de 2013
Terceira alegoria
O túnel.
O embrulho das trevas,
A solidão do recheio.
A travessia conformada,
Resignada no hábito.
A materialização dos fantasmas
Que brotam das paredes inventadas
Na imensidão do escuro.
O convívio forçado, o medo aceite, a revolta
sufocada.
A condenação revisitada,
A sentença do único possível caminho
Para o alívio da praia solarenga.
A esperança do mar,
Da conversão do deserto,
Da possível escapada à tempestade de areia como um
vórtice devorador.
Mas, para já, o mergulho,
O corpo esquecido,
A alma aberta dentro dos olhos fechados.
O túnel.
terça-feira, 24 de setembro de 2013
Texto décimo quinto
Anna
Karénina, de Lev Tolstoi. Centenas
de páginas de romance em estado puro. O cruzamento perfeito entre a
simplicidade da intriga e o complexo rendilhado de sentimentos das personagens.
A história de Anna Arkadiévna é contada de forma magistral: da circunspeção
exemplar e aparentemente inabalável até à espiral do delírio, mergulhamos no
seu drama ao virar de cada página. Ou sentimos que ele se cola a nós e nos
arrasta, como lhe faz a paixão por Vronski.
A intensidade e o sentido trágico deste amor
acentuam-se pelo contraste com as outras histórias e as outras personagens, que
são tudo menos dispensáveis nesta obra gigantesca: a diferença quase diametral
entre Dolly e Kitty ajudam-nos a perceber a profundidade do drama vivido por
Anna, num mundo agrilhoado por convenções sociais e códigos de moralidade. E
Vronski, camuflado na sua digna vulgaridade entre Oblonski, Lévine, Kosníchev e
todos os outros, torna-se o (im)provável amante numa paixão que, parece
dizer-nos Tolstoi, está ao alcance de qualquer mortal. E quanto a Alexei
Alexandróvitch? Como podemos manter-nos alheios à sua dor, como podemos escapar
à simpatia, como não acariciaremos as palavras que descrevem o seu sofrimento
cavado e elegante?
Por trás de tudo, o cenário de uma Rússia imperial
desgastada e teimosa, onde a escrita de Tolstoi parece antever a profecia de
uma mudança. E, à frente, o infinito, a transcendência. O mistério do sentido
da vida humana e do seu devir, afinal a única coisa que parece verdadeiramente
interessar ao chegar-se à última página. Porque era o que lá estava desde a
primeira.
Conheço algumas adaptações cinematográficas e
televisivas deste livro. Nunca vi nenhuma. Porque não quero. Não acredito que
seja possível traduzir em imagens a incomparável eloquência narrativa do mestre
russo. Não se pode verter o oceano numa cova da areia.
Anna
Karénina, de Lev Tolstoi: uma
grande obra da literatura universal. Imprescindível. Eterna.
terça-feira, 17 de setembro de 2013
Segunda alegoria
Diante de tudo, uma luz
Inscrita nas origens
Brilhando sobre o sentido e fim último das coisas.
Depois, um como que fumo,
Surgido das vestes brancas de uma verdade maior,
Esparge para os lados o seu perfume lacrimogénio
E embrulha as dores e putrefações
Que choram também de júbilo.
Atrás, todo o séquito deslumbrante:
Corpos teleguiados,
Vestes enfunadas
E o essencial sempre invisível.
O cortejo avança,
O filho rompe o ventre da mãe
Em fúria processional,
As trevas tornam-se luz
Num choro recém nascido feito canto lucernar.
É a Vida.
terça-feira, 10 de setembro de 2013
Texto décimo quarto
As manhãs de sábado eram para as compras. Ele
acompanhava a mãe, transportava os sacos vazios e carregava-os cheios no
regresso a casa. A mãe tinha um quisto na mão direita que lhe inibia os
carregos e, embora desdenhasse a moléstia, era sôfrega da companhia. Claro que
ele julgava-se importante apenas pela força dos braços e, como a mãe nunca lhe elogiava
os dotes do espírito, cresceu na convicção de que valia apenas enquanto
executor de tarefas.
O mercado era na rua, ocupava as placas centrais da
pequena avenida que desembocava na igreja. Mergulhado na estreiteza das bancas,
entre caixas de fruta, molhos de legumes e alguidares de peixe supostamente
fresco (os balcões do pão e dos bolos eram mais adiante e, para as roupas, era
preciso atravessar para o passeio lateral), ele não imaginava que um dia viria
a ter saudades daquele sítio. Dos encontrões entre sacos recheados, das botas a
chapinhar na água que escorria com todos os cheiros misturados, da vulgaridade
despudorada das conversas em voz alta.
Um dia, o mercado foi instalado em recinto próprio,
espaço circular de corredores concêntricos, bancas de pedra com medidas e
apetrechos regulamentares. A largueza do sítio, a limpeza e ordem de tudo
transformaram as manhãs de sábado em algo diferente, normalizado. Na aparência,
tão só, porque o cenário não constrói as personagens. E, sob aquela capa de
civilização, ele redescobriu a natural rudeza da população com a qual não se
identificava, mas em cujo seio se resignara a crescer.
Hoje, atordoado pela atmosfera artificial da
imensidão quadriculada do hipermercado, onde todas as horas são iguais e o
anonimato é uma gigantesca vaga que tudo submerge, ele recorda o bulício das
placas centrais da pequena avenida que desembocava na igreja, onde a escassez
tantas vezes determinava a necessidade de madrugar e a familiaridade chegava a
ser incómoda como insetos.
Na imensidão quadriculada do hipermercado, ele
suspira, consciente da espiral inexorável do tempo: “O que é que ainda me fará
ter saudades disto?”
segunda-feira, 2 de setembro de 2013
Texto décimo terceiro
Mergulhado nos recônditos aprazíveis do Portugal
profundo, vi-me, durante uma semana, privado do acesso à internet. Entre outros
constrangimentos, a circunstância impediu-me de manter o compromisso da
publicação semanal neste blogue, que é a forma periódica que tenho de dizer aos
meus leitores que estou vivo e penso neles,
Ligado, todavia, ao mundo da “terceira vaga” pela
TDT, assisti na televisão à notícia do décimo aniversário do Skype e de todas as suas virtualidades
de comunicação visual e imediata. A voz de locução evocava as cartas e os
bilhetes postais como ecos difusos de um passado tornado invisível pela
dobragem da esquina de uma evolução tecnológica irreversível e sedutora.
Diante do meu computador portátil, no qual exerci,
durante aqueles dias, uma acrobacia de escrita literalmente «sem rede», digitei
este texto com uma sensação mista entre a purificação e o desamparo. Para além
da nostalgia histórica da “galáxia de Gutenberg”, revisitei a memória das
cartas adolescentes que escrevi, e que enviei esperando resposta. E do tempo
que escorria em tudo isso. E do que crescia em mim durante esse tempo. E do que
se perdia nessa duração. As cartas eram segredos guardados na abstração de um
envelope selado que os comunicava com uma lentidão que se arriscava a
desatualizá-los. O Skype é a eficácia
de comunicação numa partilha de tal modo imediata e concreta e aberta que não
garante o segredo. Porventura, nem deseja.
Para além do seu potencial de realização, os meios
de comunicação ligados à alta tecnologia invocam, atualmente, em sua defesa, uma
sustentabilidade que parece projetá-los numa “quarta vaga”: a dispensa de
suporte de escrita permite evitar o desbaste de florestas (compensado, entre
nós, por recorrentes, trágicos e criminosos incêndios), garantindo viabilidade
enquanto não houver esgotamento dos recursos energéticos.
Que deveremos ainda esperar no futuro, quando todo
este presente for deixado para trás, na dobragem de esquina da evolução
inexorável?
terça-feira, 20 de agosto de 2013
Texto décimo segundo
A adolescência despontou bizarra dentro dele. Nunca
se lhe esbugalharam os olhos diante das formas curvilíneas das raparigas sobre
quem, de resto, exercia o curioso fascínio de um aconchego emocional. Elas
apreciavam a simplicidade viril do seu cavalheirismo polido, ele
dispensava-lhes um modo outro de amizade, feita de consideração e escuta.
Revelava-lhes o altruísmo na idade em que ser egoísta é tão natural como as
borbulhas no rosto. Amou e quis ser amado, mas só quando descobriu um espírito
sublime num corpo recatado de mulher.
A adolescência despontou bizarra dentro dele.
Cresceu numa desarmonia de membros, mas expandiu para dentro uma grandeza
maior, vislumbrou um mundo interior mais infinito que o universo que aprendia
nos bancos da escola. Sem saber que nome lhe dar, chamou alma a essa plenitude.
Mas era um termo castrado ainda, porque herdara uma infância de mãos postas e
não descobrira ainda o imenso lago filosófico onde haveria de mergulhar depois.
A adolescência despontou bizarra dentro dele.
Descobriu-se a olhar sempre para dentro das coisas, dos momentos, dos seres. E
não sabia porquê.
Só mais tarde, na sábia distância do tempo e no
vislumbre lúcido da memória, percebeu. Recordou os aniversários em que o seu
pai o tirava de casa e o soltava nas salas forradas de livros da grande
livraria. Ali, varrendo com o olhar as lombadas na possibilidade de escolher o
que quisesse – era essa a sua prenda de anos – experimentou inigualáveis
êxtases de identidade, desafio, liberdade e sentido. Ali, pela mão do seu pai,
descobriu um mundo de fascínio de que soube revestir-se como de um casulo.
Foi nesse casulo que eu nasci. Fui a melhor prenda
de anos que o seu pai lhe deu.
terça-feira, 13 de agosto de 2013
Primeira alegoria
Estou aqui.
Há quanto tempo dura a expetativa do encontro?
Diante de mim, uma planície de brancura:
Paz, pureza, soma de tudo.
Impaciência, porque vais aparecer.
O desejo de te ver. A pressa.
E o medo.
O nó na garganta. O garrote dourado.
O medo.
Olho através dele como de grades,
Escorro nas lágrimas uma ansiedade incontida.
O desejo de te ver na pressa de um momento que não
quero,
Porque é o princípio do fim.
Calam-se todas as vozes,
Esvazia-se o espaço, desagrega-se o tempo,
Um súbito nada envolve tudo.
E fico só.
Luz.
Luz.
Luz.
Lá estás tu.
Vês-me sem me olhares, no sorriso das tuas mãos
atadas.
Abraço-te sem fazer gestos, no sorriso do meu
olhar desatado.
A partir de agora, vou viver em ti.
terça-feira, 6 de agosto de 2013
Ficção V - Por causa de um livro
A
luz vermelha do semáforo escorregou para verde. Num reflexo condicionado, ele
engatou a primeira velocidade e pôs o veículo em andamento, sincronização
perfeita do movimento projetado do braço direito e do jogo de pés sobre os
pedais: alívio do esquerdo fixando o ponto de embraiagem, pressão do direito na
aceleração necessária para o arranque.
Era
cuidadoso na condução. Porque aprendera na infância o zelo que punha em todas
as coisas e porque se sentia permanentemente avaliado pelos clientes que
transportava.
“Vi
o filme”, chegou-lhe aos ouvidos, por entre o tiquetaque do taxímetro e o
revivalismo do rádio que emitia música dos anos setenta, a voz da mulher de
meia idade sentada no banco de trás.
Olhou-a
pelo retrovisor. Percebeu os seus olhos cerúleos, que fulgiam na pele morena
como topázios, poisados no livro que estava entalado entre o travão de mão e o
lugar do morto, lombada amarela para cima a desvendar o título: E Tudo o Vento Levou, de Margaret
Mitchell, segundo volume da segunda edição portuguesa.
“O
filme é o livro amachucado”, respondeu ele, descolorindo o mais que pôde a
entoação, “Eu prefiro ler”.
Ela
franziu a testa, acentuando o lampejo do olhar que tentava sacudir o
preconceito na sua limpidez: nunca vira um motorista de táxi como amante da
leitura, mas por que não? Ele pareceu não reparar. Apertou o volante entre as
mãos cinquentenárias treinadas para gestos mais criativos, concentrou-se no
destino e no percurso para atingi-lo. Ela não resistiu à curiosidade:
“Costuma
ler muito, aqui dentro do carro?”, perguntou.
“Gosto
de ler”, respondeu ele, procurando manter-se neutro à conversa, “É assim que me
entretenho entre dois serviços”.
Ela sorriu, iluminando todo o rosto com a
coloração azul celeste do olhar. Sentia-se já invadida por aquela curiosidade
cirúrgica que sempre a dominava perante as pessoas que encontrava no jogo do
acaso. E, numa decisão sem retorno, lançou a pergunta:
“Se
me permite: porque é que diz que o filme é o livro amachucado?”
Foi
a vez de ele sorrir, a resposta colorida de emoção bailando-lhe nos lábios. E
seguiu-se a conversa.
O
táxi foi atravessando a cidade, cúmplice daqueles dois desconhecidos que se
desvendaram um pouco nas ideias e sentimentos. Por causa de um livro.
terça-feira, 30 de julho de 2013
Texto décimo primeiro
Frequentava o 8º ano de escolaridade, na maré baixa
já meio serenada dos restos da década de setenta. A aula de História decorria
na velocidade de cruzeiro do desinteresse generalizado da turma. Dentro dele,
porém, o ritmo era outro, uma aceleração de curiosidade pelo passado que
ilumina o presente, uma voragem de busca, no tempo que foi, de uma chave de
interpretação do tempo que é. Uma avidez de conhecer, uma insatisfação da
ignorância. Uma pressa.
(Hoje ele sabe que a História não ilumina nem
interpreta: interessa, porque desenrola uma intriga; fascina, porque expõe o
mistério do que cada um de nós é no eco do testemunho do que todos os outros já
foram; e compromete, porque nos absorve na vaga da evolução das sociedades,
corrida no tempo contra um tempo que há de vir.)
O professor apontava o mapa, continentes
mergulhados nos oceanos daquela tela esticada entre duas ripas de madeira que
uma fita medrosa suspendia de um camarão torcido, acima do quadro preto (ou
seria verde escuro?). E explicava a viagem que definiria a rota do Cabo: a ida
que se alargava generosa no Atlântico, barriga esperançada de dar à luz um
qualquer Brasil a oeste, gerado no suor do polémico acordo de Tordesilhas; e a
volta recheada de oriente, a obesidade das naus apoiada nos contornos
reconhecidos da costa africana.
(Anos mais tarde, o reencontro casual com o professor,
já desativado das lides docentes e enlatado num trabalho de gabinete que lhe
satisfazia a resignada sobrevivência, deixou-o pensativo nos solavancos do
autocarro: e se o Gama também se tivesse resignado à mera sobrevivência?...)
Frequentava o 8º ano de escolaridade, na maré baixa
já meio serenada dos restos da década de setenta. E ali, naquela aula de
História que decorria na velocidade de cruzeiro do desinteresse generalizado da
turma, decidiu que queria ser professor.
terça-feira, 23 de julho de 2013
Ficção IV - A vida era outra coisa
Escrevia
compassadamente. Deixava deslizar as palavras sobre a folha pautada, ignorando
o suor, simultaneamente pegajoso e escorregadio, que lhe colava os dedos ao
mesmo tempo que lhe fazia fugir a esferográfica num discurso que não
controlava.
Porque,
verdadeiramente, ela não estava ali. Era o seu corpo fresco e curvilíneo, o seu
rosto de boneca, o seu cabelo aloirado apanhado com um elástico sobre a nuca. Mas
ela não estava ali. Era a sua mão delgada que segurava a esferográfica, unhas
massacradas pelo vício de roer. Eram até as suas ideias, ou melhor, as ideias
que estudara obstinadamente até que fossem suas, que vertia sobre o papel num
discurso claro e articulado apesar do piloto automático da distração. Mas ela
não estava ali. Discorria sobre as vicissitudes do ultramar português no
contexto da primavera marcelista, mas não queria verdadeiramente saber disso.
Importava-lhe a nota daquele teste, claro, e a classificação final da
disciplina, almofada para o exame nacional que se avizinhava. Mas a vida dela
era outra coisa. Eram os últimos dias do Ensino Secundário, o trampolim para a
universidade. Mas a vida dela era outra coisa.
Mergulhados
no sepulcro da concentração, todos os alunos debruçavam sobre as folhas de
prova os recheados silêncios da sabedoria ou os desprovidos sossegos da
ignorância. E o véu de quietude da sala de aula era devassado pelos gritos das
crianças no pátio, estridentes como canções libertárias, parecendo contestar a
tirania daquele esforço intelectual.
Ela
invejava-as. Invejava a liberdade delas, a vida que se soltava, inconsciente de
si mesma, na descontração daqueles gritos. A sua vida. Invejava-as enquanto a
esferográfica lhe conduzia a mão no discurso que desenrolava em caligrafia
rasteira.
E
sorria, limpava o suor da mão, observadora ausente da sua própria escrita.
E
lamentava não poder voar.
terça-feira, 16 de julho de 2013
Texto décimo
Os
Miseráveis, de Victor Hugo. A
escrita definitiva, a literatura acabada e completa. Fixamo-nos no início de
cada volume como em alicerces, crescemos com os capítulos sucessivos, viramos a
última página como quem coloca a pedra de fecho da abóbada. E ficamos a
contemplar aquela imensa obra, arquitetura de palavras, força contida nas
palavras, vida latente na força que as palavras contêm.
Os
Miseráveis: palavras que ganham
vida para dizer a vida toda com incomparável mestria. Está ali a França das
revoluções e das barricadas, a história, o ser humano na metáfora do anseio de
liberdade e das barreiras da contradição. Está ali a intriga, a humanidade toda
naquelas personagens, nas palavras que as dizem de forma sublime. Estamos ali
nós.
Somos nós, naquelas personagens. Somos nós naqueles
heroísmos preenchidos de fragilidade, naquelas fraquezas possuídas pela
coragem. No sublime e no ridículo, no genuíno e no perverso, na virtude e na
baixeza. Somos nós em Jean Valjean e em Javert, em Fantine e nos Thénardier. E
em Cosette. E em Marius. E no Gavroche que vive – ou já viveu – ou devia viver
ou ter vivido – em cada um de nós. E em todos os outros.
Somos nós naqueles que são muito mais que nós.
Elevam-nos a fasquia, transcendem-nos. São literatura, dizem-nos a nós mesmos
muito mais. E amamo-los por isso.
Os
Miseráveis, de Victor Hugo: o
melhor livro que já li.
segunda-feira, 8 de julho de 2013
Ficção III - "Ajeitas-te bem, rapaz!"
Lavava
pratos um após outro, como quem folheia as páginas de um livro. Todos os dias,
em horário fixo. Passava repetidamente o esfregão para os desengordurar, com a
energia de quem relê uma frase mais rebuscada em busca do sentido preciso. Era
zeloso e diligente no trabalho, como se aquela fosse a tarefa mais nobre e
necessária do mundo, como se o sentido da sua existência se resolvesse no
alumínio daquele lava-loiça sobre o qual se debruçava.
“Ajeitas-te
bem, rapaz”, dizia o encarregado da copa, ao passar por ele, certo de que o
animava com o seu tom de encorajamento.
Ninguém
gosta de lavar pratos. Todos os dias, em horário fixo. Ele superava o desgosto
desenvolvendo uma certa insensibilidade ao ato, alicerçada numa secreta sublimação.
Sabia que, do outro lado da copa, na sala iluminada, um empregado mais velho,
de camisa engomada e laço preto, dispunha aqueles mesmos pratos, enxutos e
reluzentes, nos tampos atoalhados de mesas reservadas, diante de homens de
negócios revestidos de burocracia, mulheres vaporizadas nos vestidos
desprendidos de uma noite de gajas, casais assumidos ou furtivos, famílias
celebrativas ou simplesmente reunidas em busca de funcionalidade. Mas não era
isso que o animava.
Terminado
o horário fixo, despia o avental e voltava a envergar a gabardina azul,
levantava a gola e pegava na pasta de cabedal, virava costas à sala iluminada onde
nunca entrara e saía do restaurante pela porta dos fundos, que deitava para a
rua mais curta até à estação de comboios.
“Ajeitas-te
bem, rapaz”, ecoava-lhe na mente a antífona do encarregado da copa.
Alcançava
a estação invariavelmente quatro minutos antes da chegada do comboio. Esperava,
entrava, conquistava um lugar, desarmava-se na abertura da pasta de cabedal,
escancarava-se no livro aberto de que retomava a leitura. Era o primeiro volume
de Os Miseráveis. Ele cumprira o
horário fixo de avental com a mente focada na desgraça de Fantine.
Mais
quinze dias a folhear pratos engordurados sobre o alumínio do lava-loiça e já
poderia pagar a inscrição no curso de Literatura.
“Ajeitas-te
bem, rapaz”.
sexta-feira, 5 de julho de 2013
Conversando... sobre "Nós, Vida" (2)
Nós, Vida
é um livro centrado (quase exclusivamente) em personagens e situações. Do
cruzamento delas resulta o enredo, no qual é difícil distinguir uma figura
central.
Uma
das curiosidades do livro reside, quanto a mim, na forma como a definição da
personagem principal (ou das personagens principais, se quisermos conceder um
protagonismo plural) difere de acordo com a perspetiva de leitura e a própria
maneira de sentir do leitor.
Por
isso, deixo aqui uma pergunta a cada um dos leitores: qual é, para si, a
personagem principal de Nós, Vida?
Gostaria
muito de conhecer respostas…
terça-feira, 2 de julho de 2013
Texto nono
Relação fiel e verdadeira. Eu deixo-o ser quem é
todos os dias, assisto de dentro ao modo inglório como ele tenta debalde ser
quem deveria, amparo na minha inexistência a sua frustração essencial.
Depois espreito a agitada quietude das suas noites,
invado as insónias que se calhar lhe provoco, afirmo-me nele esta vontade de
escrever, de ser por escrito o que ele não alcança ser em vida. Completo na
minha essência a sua limitação existencial.
E ele consente, agradece até este algo mais que
está nele e o promove, deixa-me ser quem sou nos espaços de noite onde ele não
é. E, assim, chega a ser ele próprio algo mais. Relação fiel e verdadeira.
Às vezes isso acontece em pleno dia, ou faz-se dia
pleno quando isso acontece. E resulta a escrita.
domingo, 30 de junho de 2013
Conversando... sobre "Nós, Vida"
Quando,
no processo prévio à publicação, registei o livro Nós, Vida, o formulário que preenchi pedia uma síntese da obra num
espaço que não ocupava mais de três linhas. Recordo-me da dificuldade que tive
em exprimir em poucas palavras em que consistia o livro e do que tratava. Escrevi
então qualquer coisa como: “Ficção
narrativa em que, através do relato das vidas cruzadas de personagens comuns,
se promove uma reflexão sobre o sentido da vida, o ser humano e o seu destino.”
Mas
esta frase, confesso, não me satisfez plenamente.
Solicito,
por isso, aos acompanhantes deste blogue e leitores do livro, que partilhem
comigo neste espaço a concordância ou discordância relativamente a esta
definição. E peço que, a partir das vossas perspetivas de leitores, me ajudem a
elaborar uma síntese mais adequada e completa.
Obrigado!
terça-feira, 25 de junho de 2013
Texto oitavo
Noite. Os ponteiros fosforescentes do relógio desenham
as três e meia. O silêncio invade o espaço todo que a escuridão embrulha. Como
sempre, ele não consegue dormir. Levanta-se da cama, ergue o seu corpo do
estrado que protesta a sua insónia num rangido acusatório. Olha brevemente para
a tranquilidade, no outro lado da cama. O espesso invólucro da noite mal deixa
entrever a beleza dela, derramada entre os lençóis naquele corpo maduro,
delicado e provocante, naquele espírito elevado, voluntarioso e sensível. E,
dentro dele, há um impasse de ternura no coração sobressaltado.
Afasta-se, sai do quarto. Percorre a casa de olhos
bem abertos no escuro, atento à impossibilidade de ver com clareza.
O sofá da sala sufoca um queixume ao sofrer o
acolhimento do seu corpo pesado. Ele ali fica, sem pressa, libertando o
espírito no tempo que escorre, saboreando lentamente a insónia resignada que é,
para ele, a contrapartida noturna de não ser indiferente às coisas, durante o
dia.
Não acende a luz. Deixa uma ténue esperança brilhar
no escuro ou sonhar com isso: talvez daquela solidão nasça alguma coisa que
valha a pena escrever.
Talvez eu queira.
sábado, 22 de junho de 2013
Conversando...
A
sessão de apresentação de Nós, Vida,
no passado dia 20, deu-me um vislumbre da possível importância da obra: a
afirmação física do objeto-livro, a sua inegável elegância estética, a presença
multiplicada de amigos, a atenção deles sobre mim como um abraço de olhares. A
curiosidade e a expetativa.
Gostaria
de captar o eco de tudo isto no interesse tornado leitura, na leitura vertida
em opinião, na opinião feita partilha. Este blogue pode também ser um espaço de
conversa sobre o livro e tudo o que ele suscita. Nesta época de incessante
troca de informações, urge valorizar a literatura como conteúdo enriquecedor da
comunicação.
Para
quem preferir fazer um comentário mais particular, estarei sempre disponível através
do endereço de e-mail alvarocordeiro64@gmail.com.
Obrigado
pelo acompanhamento e apoio.
terça-feira, 18 de junho de 2013
Ficção II - A impaciência da espera
Terminou o jantar simples: uma tigela de sopa
aquecida com dois toques no botão do microondas e deglutida em colheradas
ritmadas; uma empada de galinha que ficara da visita da velha amiga de
infância, durante a tarde; as uvas, vagamente passadas sob a torneira com o
desleixo de o-que-não-mata-engorda. Gostava de uvas porque eram frescas e doces
e, principalmente, porque não era preciso descascá-las, tarefa inacessível aos
seus olhos privados de luz.
Tateou a pilha de pratos no lava-loiças e depositou
sobre ela a tigela vazia. Limpou as mãos ao pano mais sujo que elas que pendia
de um prego fixo na parede há mais anos do que era capaz de se lembrar e
deslocou para a sala o seu corpo desgastado pela osteoporose. Com um suspiro,
deixou-se abraçar pela poltrona de todos os serões, encostou a cabeça e fechou
os olhos, num gesto que significava o mesmo que tê-los abertos.
Recordou os tempos de outrora, antes da degeneração
macular, em que o seu olhar de rapariga independente e culta absorvia toda a
luz em redor com despreocupada sofreguidão, vagueava por paisagens e pessoas
para mergulhar na profundidade dos livros, onde buscava emoção e dor, paixão e
vida dentro da própria vida. Eram tempos de leituras furtivas, clássicos de
peso sonegados da estante paterna em tardes de solidão, novelas proibidas
disfarçadas noites a fio entre as pregas dos cobertores. E revistas,
fotonovelas e poesia.
Agora, essas lembranças emergiam do poço escuro dos
seus oitenta e dois anos como lamparinas de revolta, impotentes para romper a
espessa cortina dos seus olhos mortos. Num gesto amolecido pela resignação,
deslocou o braço para a mesa a seu lado, em movimentos insistentes e cautelosos
de sonda, até que os seus dedos enrugados toparam com a maciez das folhas
sobrepostas.
Pegou no livro e aconchegou-o no colo, numa carícia
de saudade e desgosto. E suspirou repetidamente a impaciência da espera. O
tempo demorava o dobro do tempo, naquelas horas em que, na impotência da
cegueira, aguardava a chegada do neto que viria ler-lhe mais algumas páginas.
sábado, 15 de junho de 2013
Conversando...
Saudações
cordiais.
Quero
agradecer a todos os visitantes e seguidores deste blogue. A intenção, ao
criá-lo, foi possibilitar um espaço de partilha a partir da escrita e da
criação literária, essa forma indireta de olhar para o mundo em que vivemos e
que tão diretamente nos diz respeito.
Gosto
de escrever e de comunicar por escrito. Por isso, alegram-me os comentários dos
leitores. Espero por eles para estabelecer diálogo. Tentarei sempre responder,
como até aqui.
Se
alguém quiser dirigir-me uma mensagem mais particular, poderá contactar-me por
e-mail: alvarocordeiro64@gmail.com.
Responderei sempre.
Obrigado
por estarem aqui. Sejam bem vindos. Fiquem por cá!
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