Escrevia
compassadamente. Deixava deslizar as palavras sobre a folha pautada, ignorando
o suor, simultaneamente pegajoso e escorregadio, que lhe colava os dedos ao
mesmo tempo que lhe fazia fugir a esferográfica num discurso que não
controlava.
Porque,
verdadeiramente, ela não estava ali. Era o seu corpo fresco e curvilíneo, o seu
rosto de boneca, o seu cabelo aloirado apanhado com um elástico sobre a nuca. Mas
ela não estava ali. Era a sua mão delgada que segurava a esferográfica, unhas
massacradas pelo vício de roer. Eram até as suas ideias, ou melhor, as ideias
que estudara obstinadamente até que fossem suas, que vertia sobre o papel num
discurso claro e articulado apesar do piloto automático da distração. Mas ela
não estava ali. Discorria sobre as vicissitudes do ultramar português no
contexto da primavera marcelista, mas não queria verdadeiramente saber disso.
Importava-lhe a nota daquele teste, claro, e a classificação final da
disciplina, almofada para o exame nacional que se avizinhava. Mas a vida dela
era outra coisa. Eram os últimos dias do Ensino Secundário, o trampolim para a
universidade. Mas a vida dela era outra coisa.
Mergulhados
no sepulcro da concentração, todos os alunos debruçavam sobre as folhas de
prova os recheados silêncios da sabedoria ou os desprovidos sossegos da
ignorância. E o véu de quietude da sala de aula era devassado pelos gritos das
crianças no pátio, estridentes como canções libertárias, parecendo contestar a
tirania daquele esforço intelectual.
Ela
invejava-as. Invejava a liberdade delas, a vida que se soltava, inconsciente de
si mesma, na descontração daqueles gritos. A sua vida. Invejava-as enquanto a
esferográfica lhe conduzia a mão no discurso que desenrolava em caligrafia
rasteira.
E
sorria, limpava o suor da mão, observadora ausente da sua própria escrita.
E
lamentava não poder voar.
Não, claro que não. Porque a vigilância de exames é trabalho profissional seriíssimo, no qual toda a atenção está centrada na própria tarefa.
ResponderEliminarInspirado no momento de realização de uma prova escrita a uma turma, isso sim. Porque, mesmo quando realizas, com competência e rigor, uma atividade, a imaginação brota e revolve-se dentro de ti, rompe as grades, transcende-te. À espera do momento em que possas ir atrás dela e dar-lhe a forma de palavras. À espera de que essas palavras deem sentido às atividades que realizas.
Toda a ficção nasce da realidade. Ou o contrário...