terça-feira, 29 de outubro de 2013

Quarta alegoria

O abalo
O sufoco
O nó na garganta
O soco no estômago
A vertigem da largada
As amarras receosas
A onda que arrasta as teimosias de âncora
O antegozo da aventura
A saudade antecipada
O passo decisivo
O abraço da partida que não se desprende
Aperta-se mais nos olhares que se afastam
O choro do adeus alegre
Espumante derramado na sagração da viagem
E depois o silêncio
A alegria confusa na dor engolida em seco
O consolo da missão a cumprir-se
O medo da incontornável finitude
A angústia de ser humano.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Texto décimo sétimo

Era de manhã. Cedo, mas ele não sabia precisar a hora certa. Ainda não usava relógio porque não havia para quê. A decifração do código hermético do mostrador era, aos quatro anos, uma tarefa transcendente, algures a meio caminho entre a contemplação e a pesquisa.
Chegou pela mão da mãe, porque esse era um tempo em que ainda fazia sentido aquele aconchego de uma mão maior envolvendo a sua. Havia uma porta em arco, solene e robusta, que talvez fosse castanha, mas que ele apenas recorda na cor verde escura em que foi pintada de novo, anos mais tarde. A porta estava aberta, porque havia muitos meninos como ele, que chegavam aconchegados por mãos maiores que envolviam as suas, como certezas repletas que abafavam os medos apertados que se deixavam conduzir.
Transpondo o umbral, ele notou a penumbra do átrio, simultaneamente misteriosa e lúgubre. Os outros meninos pararam e ensaiaram um recuo estarrecido, prontamente combatido pelo puxão firme das mãos maiores que comandavam sem apelo todos os sobressaltos. Ou talvez não tenha havido recuo nem puxão nem sobressalto, mas apenas a consciência, da parte dele, de uma reação distinta quando, soltando a mão do aconchego, sorriu por dentro do seu rosto inexpressivo e avançou pelo chão de tijoleira até a um banco corrido, encostado à parede lateral. Sentou-se, porque sabia que vinha para ficar. A mãe dissera-lho, antes de saírem de casa e, por isso, ele interiorizara o facto com uma certeza tão absoluta como a noção da sua própria existência. Ou mais ainda. Os outros meninos permaneciam de pé, junto das mães que procuravam largá-los das mãos maiores com a mesma repleta certeza com que os tinham agarrado e trazido até ali.
Ele observava atentamente aquele medo que subia das mãos largadas para o encolhimento dos rostos. Em alguns deles, esse medo extravasou em lágrimas mal contidas que ele não percebeu, mas de que estranhamente se compadeceu. A mãe dirigiu-se a ele e ele viu que os passos de aproximação eram um movimento de despedida.
“Agora ficas aqui com os outros meninos”, disse a mãe, “Eu vou-me embora e volto logo à tarde para te vir buscar”.
Ele fez o seu rosto sorrir por fora do seu íntimo inexpressivo e não disse nada. A docilidade com que se deixara conduzir desde casa, desde a decisão da mãe, fora já eloquência bastante e nada mais havia a dizer. Porque ele não considerava a necessidade de resposta que a mãe sentia, a insegurança que criava nela aquele sorriso vazio com que pretendia confortá-la. A mãe beijou a imobilidade dele e deu meia volta, engolindo a ânsia de palavras com que sempre se afastava dele e que ele nunca satisfazia, sem que ela soubesse porquê. Ou sabendo um porquê que não era o dele, porque o silêncio que, para ela, era frieza e egoísmo, para ele não passava de um modo de exprimir a insignificância que sentia relativamente a si próprio.
E ficou na escola.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Ficção VI - Apeteceu-lhe chorar

De olhos baixos, acocorado na sua envergonhada miséria, sentiu o gotejar das moedas na palma da mão estendida. A seguir fechou-a num punho cerrado de impotência e revolta. Só depois ergueu os olhos, a tempo de ver as costas da senhora idosa que se afastava, no passo ligeiro da consciência aliviada.
Apeteceu-lhe chorar, derramar as lágrimas do seu grito surdo sobre aquelas moedas que protegia ciosamente na mão fechada. De olhos marejados, apertou mais o punho e sentiu, nas pontas dos dedos, o atrito pegajoso incómodo da sujidade que abominava. E recordou um tempo anterior, em que os mesmos dedos, impecavelmente limpos, arrumavam livros nas prateleiras num ritual de reverência e ternura. Ou percorriam levemente as lombadas num fervor especializado, em busca de satisfazer o pedido de mais um cliente.
Esse tempo era agora uma memória, uma saudade amarga e feroz: entristecia-o no orgulho de tê-lo vivido, consumia-o no revivalismo em que o alimentava. A livraria fechara as portas num ato de rendição à competição acelerada de um tempo que a sua quietude não sabia acompanhar. Despejado do seu emprego de toda a vida, ele viu-se, aos quarenta e nove anos, abandonado na esquina do seu mundo arruinado, condenado a recomeçar sem ponto de partida.
Tentou, porque a sua alma resistente negou-se a aceitar o afogamento. Mas a verdade é que o seu corpo já ultrapassara a juventude convencionada para o relançamento de uma vida de produtividade aceitável. E, apesar de teimosamente insistir, após vinte meses de recusas foi obrigado a capitular. E resignou-se a estender a mão, habituada ao toque dos livros, à mendicidade de algumas moedas, compassivamente partilhadas por outros sobreviventes mais afortunados.
Apeteceu-lhe chorar, derramar as lágrimas do seu grito surdo sobre aquelas moedas que protegia ciosamente na mão fechada. Sempre amara os livros e nunca se preocupara com o dinheiro. Agora, no entanto, sabia que aquelas moedas poderiam valer-lhe mais que a livraria inteira do seu passado. Porque lhe garantiriam uma sopa para o jantar que lhe aconchegaria o abandono a que a falência da livraria o condenara.
E chorou. As lágrimas gotejaram sobre o seu punho cerrado sobre as moedas gotejadas. Até que ponto seria ainda capaz de descer?...

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Texto décimo sexto

Jogava as damas com o avô desde a infância. Sem o saber, foi crescendo naquele ritual de aprendizagem da vida. O avô era um homem repleto, trémulo da doença de Parkinson e da absorção de múltiplas vivências, um pouco curvado do peso dos anos e do armazenamento de memórias gratificantes. Nascera no século dezanove, vivera o tempo do regicídio e da República, assistira às duas guerras mundiais e atravessara o túnel da ditadura. E ainda haveria de contar a história da revolução dos cravos.
De cada vez que jogavam as damas, o avô inclinava-se sobre o tabuleiro que um filho trouxera do Brasil e derramava-se sobre ele em lições de vida. Nas histórias que contava nas entrelinhas das jogadas (as “mudas”, sempre plenas de intenção), mas também no próprio diálogo estabelecido sobre o tabuleiro, que aqueles dedos enrugados de sabedoria transformavam em metáfora de ser. E ele, deixando-se iniciar pelo avô no jogo das damas, sem o saber crescia por dentro da sua meninice. Aprendia que, no pavimento quadriculado da vida, há áreas que não podem pisar-se; que é preciso seguir pelos espaços disponíveis; que a única opção de movimento válida é para a frente; que se deve sempre buscar companhia no avanço, sem ter medo de enfrentar os adversários; que há uma meta no extremo oposto daquele donde se parte e que é preciso superar os obstáculos para atingi-la; que, uma vez aí chegado, tudo recomeça, que o crescimento no direito a movimentos mais amplos é acompanhado de uma duplicação do peso a transportar e de uma responsabilidade maior sobre o tabuleiro. E que o jogo é uma partilha onde a estratégia de sucesso assenta na atenção ao outro; que a vitória é uma alegria dividida e efémera, o empate é uma (in)satisfação mútua e a derrota um crescimento a partir dos próprios erros. Que o melhor de tudo é poder jogar de novo. Ter com quem.
Jogava as damas com o avô desde a infância. Bebeu sobre o tabuleiro o amor à vida, na delicadeza do toque das pedras redondas, no recheio deslumbrante das memórias partilhadas, na ternura daquela longevidade paciente dada ao respeito numa presença desarmada e simples. Quando o avô morreu, ele tinha vinte anos. Deixou de jogar as damas, depois de mais algumas partidas casuais com parceiros fortuitos, “mudas” desabitadas em que foi indiferente ganhar ou perder. Nunca mais lhe apeteceu.
Ainda conserva o tabuleiro que o tio trouxe do Brasil.


quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Terceira alegoria

O túnel.
O embrulho das trevas,
A solidão do recheio.
A travessia conformada,
Resignada no hábito.
A materialização dos fantasmas
Que brotam das paredes inventadas
Na imensidão do escuro.
O convívio forçado, o medo aceite, a revolta sufocada.
A condenação revisitada,
A sentença do único possível caminho
Para o alívio da praia solarenga.
A esperança do mar,
Da conversão do deserto,
Da possível escapada à tempestade de areia como um vórtice devorador.
Mas, para já, o mergulho,
O corpo esquecido,
A alma aberta dentro dos olhos fechados.
O túnel.