Jogava as damas com o avô desde a infância. Sem o
saber, foi crescendo naquele ritual de aprendizagem da vida. O avô era um homem
repleto, trémulo da doença de Parkinson e da absorção de múltiplas vivências,
um pouco curvado do peso dos anos e do armazenamento de memórias gratificantes.
Nascera no século dezanove, vivera o tempo do regicídio e da República,
assistira às duas guerras mundiais e atravessara o túnel da ditadura. E ainda
haveria de contar a história da revolução dos cravos.
De cada vez que jogavam as damas, o avô inclinava-se
sobre o tabuleiro que um filho trouxera do Brasil e derramava-se sobre ele em
lições de vida. Nas histórias que contava nas entrelinhas das jogadas (as
“mudas”, sempre plenas de intenção), mas também no próprio diálogo estabelecido
sobre o tabuleiro, que aqueles dedos enrugados de sabedoria transformavam em
metáfora de ser. E ele, deixando-se iniciar pelo avô no jogo das damas, sem o
saber crescia por dentro da sua meninice. Aprendia que, no pavimento
quadriculado da vida, há áreas que não podem pisar-se; que é preciso seguir pelos
espaços disponíveis; que a única opção de movimento válida é para a frente; que
se deve sempre buscar companhia no avanço, sem ter medo de enfrentar os
adversários; que há uma meta no extremo oposto daquele donde se parte e que é
preciso superar os obstáculos para atingi-la; que, uma vez aí chegado, tudo
recomeça, que o crescimento no direito a movimentos mais amplos é acompanhado
de uma duplicação do peso a transportar e de uma responsabilidade maior sobre o
tabuleiro. E que o jogo é uma partilha onde a estratégia de sucesso assenta na
atenção ao outro; que a vitória é uma alegria dividida e efémera, o empate é
uma (in)satisfação mútua e a derrota um crescimento a partir dos próprios
erros. Que o melhor de tudo é poder jogar de novo. Ter com quem.
Jogava as damas com o avô desde a infância. Bebeu
sobre o tabuleiro o amor à vida, na delicadeza do toque das pedras redondas, no
recheio deslumbrante das memórias partilhadas, na ternura daquela longevidade
paciente dada ao respeito numa presença desarmada e simples. Quando o avô
morreu, ele tinha vinte anos. Deixou de jogar as damas, depois de mais algumas
partidas casuais com parceiros fortuitos, “mudas” desabitadas em que foi
indiferente ganhar ou perder. Nunca mais lhe apeteceu.
Ainda conserva o tabuleiro que o tio trouxe do
Brasil.
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