De
olhos baixos, acocorado na sua envergonhada miséria, sentiu o gotejar das moedas
na palma da mão estendida. A seguir fechou-a num punho cerrado de impotência e
revolta. Só depois ergueu os olhos, a tempo de ver as costas da senhora idosa que
se afastava, no passo ligeiro da consciência aliviada.
Apeteceu-lhe
chorar, derramar as lágrimas do seu grito surdo sobre aquelas moedas que
protegia ciosamente na mão fechada. De olhos marejados, apertou mais o punho e
sentiu, nas pontas dos dedos, o atrito pegajoso incómodo da sujidade que
abominava. E recordou um tempo anterior, em que os mesmos dedos, impecavelmente
limpos, arrumavam livros nas prateleiras num ritual de reverência e ternura. Ou
percorriam levemente as lombadas num fervor especializado, em busca de
satisfazer o pedido de mais um cliente.
Esse
tempo era agora uma memória, uma saudade amarga e feroz: entristecia-o no
orgulho de tê-lo vivido, consumia-o no revivalismo em que o alimentava. A
livraria fechara as portas num ato de rendição à competição acelerada de um
tempo que a sua quietude não sabia acompanhar. Despejado do seu emprego de toda
a vida, ele viu-se, aos quarenta e nove anos, abandonado na esquina do seu
mundo arruinado, condenado a recomeçar sem ponto de partida.
Tentou,
porque a sua alma resistente negou-se a aceitar o afogamento. Mas a verdade é
que o seu corpo já ultrapassara a juventude convencionada para o relançamento
de uma vida de produtividade aceitável. E, apesar de teimosamente insistir,
após vinte meses de recusas foi obrigado a capitular. E resignou-se a estender
a mão, habituada ao toque dos livros, à mendicidade de algumas moedas,
compassivamente partilhadas por outros sobreviventes mais afortunados.
Apeteceu-lhe
chorar, derramar as lágrimas do seu grito surdo sobre aquelas moedas que
protegia ciosamente na mão fechada. Sempre amara os livros e nunca se
preocupara com o dinheiro. Agora, no entanto, sabia que aquelas moedas poderiam
valer-lhe mais que a livraria inteira do seu passado. Porque lhe garantiriam
uma sopa para o jantar que lhe aconchegaria o abandono a que a falência da livraria
o condenara.
E
chorou. As lágrimas gotejaram sobre o seu punho cerrado sobre as moedas
gotejadas. Até que ponto seria ainda capaz de descer?...
Pela Arte, o que se faz? Até onde somos capazes de "descer"? Os idealistas diriam que até ao fim do mundo, e no entanto muitos se deixam corromper pelas comodidades da vida, muitas vezes disfarçadas (não apenas de pobreza...).
ResponderEliminarÉ bem verdade!...
EliminarPor vezes, em nome do conceito falsamente economicista de produtividade, tendemos a desvalorizar a cultura e a arte, o ócio tal como era entendido na Grécia Antiga.
Tenho para mim que uma sociedade que valorize o ócio enriquece, ao passo que, obcecada na mira redutora do lucro, fica mais pobre. Porque valor e preço não são a mesma coisa.
Obrigado pelo seu comentário!
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