Abandono. Liberdade. Plenitude.
Olho-te e vejo-me no olhar com que me vês. Derramo-me
no meu olhar para ti e recolho-me de volta no teu olhar para mim em que te
dizes inteira. E sinto-me mais eu, mais simplesmente eu, na tua pessoa que vejo
que me vê. Olho-te.
Toco-te e há algo em mim que se acrescenta. No limite
dos meus membros há um corpo maior em que me torno. Que já lá estava na espera
de ti, que já lá estava mesmo na ignorância de ti da minha vida anterior,
quando a extensão da minha alma secava no alcance dos meus sentidos. Que se
concretiza agora, na febre com que devolves a aproximação do meu gesto que te
alcança. Toco-te.
Beijo-te e toda a minha existência está na ternura
de me morderes. Há um abraço que se alarga ao universo na estreiteza de um
egoísmo de lábios, uma consciência de eternidade que se expande na fugacidade
de um instante. Beijo-te.
Entrego-me. Há um desejo de abandono, uma vontade
de perda total nesta certeza do maior encontro possível. Todos os muros se
abatem, as grades todas se desintegram. Revestidos de sinceridade nua, os
nossos corpos, vazios inermes pedintes, enchem-se da mais poderosa arma que uma
vida pode oferecer a outra. Entrego-me.
E vivo contigo. A espuma das alegrias e a onda
cavada dos sofrimentos, o latejar das expectativas e a mudez oca dos
desesperos, a pirotecnia dos sucessos e a escuridão pesada dos fracassos, a
seara lourejante das serenidades e o deserto agressivo das angústias. Suor e
brandura, conforto e lágrimas. Tudo. Vivo contigo.
Olho-te. Toco-te. Beijo-te. Entrego-me. Vivo contigo.
Abandono. Liberdade. Plenitude.
É assim, há vinte e três anos.
Pode
ser amor…