O
rapaz endireitou-se, afastou-se ligeiramente do motor sobre o qual se debruçava
e onde lia com a desenvoltura de um letrado nas entrelinhas dos compêndios.
Desviou-se um pouco para o lado do capot
levantado, para ver o pára-brisas atrás do qual o cliente, no banco do
condutor, se afundava numa ansiedade incontrolada, agarrado ao volante como um
náufrago a não importa o quê.
“Dê
à chave, faz favor”, disse o rapaz, enquanto esfregava as mãos sujas de óleo ao
desperdício mais sujo que as limpava.
O
cliente era um homem maduro, engravatado de funções elevadas num colarinho
engomado de graus académicos. Obedeceu, no gesto vagamente devoto de quem
confia num milagre que já não espera. Rodou a chave na ignição, o motor pareceu
estrebuchar, queixou-se num soluço de expetoração presa.
“Já
quis”, comentou o rapaz, “Insista, dê à chave”.
De
novo a chave rodou, sucessivamente como contas de um cordão de reza a passar
nos dedos. Até que um ruído mais profundo e consistente anunciou que o motor
entrara em funcionamento, evoluindo do ronco áspero inicial para um
estremecimento suave e regular.
O
cliente engravatado saiu do automóvel, tentando dissolver o nervosismo no modo
como levava a mão ao bolso interior do casaco, em gesto de sacar uma arma. Mas
mais atrapalhado.
“Muito
obrigado”, disse, a carteira já na mão para exprimir em notas bancárias a
gratidão que não sabia dizer, “Estou sem tempo, percebe? Tome para si e muito
obrigado. Logo havia de me acontecer uma avaria destas aqui nesta terra de
ninguém. E eu sem tempo, percebe? Muito obrigado”.
O
rapaz, tão insensível às notas que lhe vieram parar às mãos como ao discurso de
rabo na boca do cliente, quedou-se a olhá-lo. Viu-o entrar novamente no
automóvel, arrancar num frenesim de pressa e desaparecer da sua vista tão
definitivamente como se lhe esvaía do horizonte o curso de engenharia aeroespacial
com que inadvertidamente sonhara e do qual desaguava no anónimo desenrasque de
motores daquela oficina de província. E sorriu à lembrança do cliente
engravatado, sentindo-se maior do que ele numa superioridade que não era
orgulho, mas consciência da necessidade: mesmo um doutor engomado precisa de
alguém que, limpando as mãos ao desperdício mais sujo do que elas, o ajude a
dar à chave.
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