terça-feira, 18 de junho de 2013

Ficção II - A impaciência da espera

Terminou o jantar simples: uma tigela de sopa aquecida com dois toques no botão do microondas e deglutida em colheradas ritmadas; uma empada de galinha que ficara da visita da velha amiga de infância, durante a tarde; as uvas, vagamente passadas sob a torneira com o desleixo de o-que-não-mata-engorda. Gostava de uvas porque eram frescas e doces e, principalmente, porque não era preciso descascá-las, tarefa inacessível aos seus olhos privados de luz.
Tateou a pilha de pratos no lava-loiças e depositou sobre ela a tigela vazia. Limpou as mãos ao pano mais sujo que elas que pendia de um prego fixo na parede há mais anos do que era capaz de se lembrar e deslocou para a sala o seu corpo desgastado pela osteoporose. Com um suspiro, deixou-se abraçar pela poltrona de todos os serões, encostou a cabeça e fechou os olhos, num gesto que significava o mesmo que tê-los abertos.
Recordou os tempos de outrora, antes da degeneração macular, em que o seu olhar de rapariga independente e culta absorvia toda a luz em redor com despreocupada sofreguidão, vagueava por paisagens e pessoas para mergulhar na profundidade dos livros, onde buscava emoção e dor, paixão e vida dentro da própria vida. Eram tempos de leituras furtivas, clássicos de peso sonegados da estante paterna em tardes de solidão, novelas proibidas disfarçadas noites a fio entre as pregas dos cobertores. E revistas, fotonovelas e poesia.
Agora, essas lembranças emergiam do poço escuro dos seus oitenta e dois anos como lamparinas de revolta, impotentes para romper a espessa cortina dos seus olhos mortos. Num gesto amolecido pela resignação, deslocou o braço para a mesa a seu lado, em movimentos insistentes e cautelosos de sonda, até que os seus dedos enrugados toparam com a maciez das folhas sobrepostas.
Pegou no livro e aconchegou-o no colo, numa carícia de saudade e desgosto. E suspirou repetidamente a impaciência da espera. O tempo demorava o dobro do tempo, naquelas horas em que, na impotência da cegueira, aguardava a chegada do neto que viria ler-lhe mais algumas páginas.

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