domingo, 5 de novembro de 2017

Texto octogésimo sétimo

O ator é um homem simples. Como todos os homens, percorre o dia a dia de uma existência condenada à morte, porém tem o privilégio de saborear a eternidade no ranger ancestral das tábuas do palco. O seu trabalho é representar, tal como o do cirurgião é reparar corpos ou o do trolha é ajudar a fabricar as entrelinhas de um arranha-céus.
O ator é um homem simples. Quando ensaia ou atua, reduz-se no que é para dar espaço à personagem que se torna, descobre-se plenamente ele na pessoa de si próprio que aceita deixar de ser, mostra-se todo na pessoa fora dele que vem habitá-lo por dentro. Finge verdadeiramente, porque é completamente verdadeiro no seu fingimento. É um hipócrita desde o rito dionisíaco e aceita toda a beleza de sê-lo, comove-se diante da força libertadora da sua hipocrisia sagrada. Da qual se considera indigno.
O ator é um homem simples. Observa e observa-se, recua aos tempos primordiais e projeta-se no devir humano. Viaja. Vê longe quando olha à sua volta e vê mais longe quando olha para dentro de si. Sente nas vísceras o grito da humanidade toda, mostra-o no seu corpo (única ferramenta que possui) numa ferocidade de estigmas. E encontra-se aí. Não foge do sacrifício porque não sabe como, o homem simples que nasceu não lhe ensinou esse truque. Por não ser digno.
O ator é um homem simples. Não se exibe, entrega-se. Não busca o aplauso, mas a imolação. Crucifica-se, morre todo de cada vez. E ressuscita depois, para continuar a viagem.
É assim o ator. O verdadeiro.

Fotografia de Jorge Figueiredo, no ensaio de O Relógio.

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