A música que o público ouve é uma paixão que sai de mim, disse-lhe ainda
no grito calado que ela se habituou a seguir numa quietude de susto, que é
arrancada ou sugada de mim para a orquestra e que os músicos transbordam com o
talento de que são capazes. É uma sangria a que me entrego completamente, de
cada vez como se fosse a última, em busca da verdade que só ali posso
encontrar. Torcer o destino, a vida é um desencontro de dores em que não sou
capaz de escolher a solução mais fácil.
Desencontro
de dores. Calei o meu silêncio, não queria que a Rita conhecesse as páginas
arrancadas do meu passado, saudades são fraquezas paralisantes. Houve uma
infância aconchegada, a casa acolhedora como sombra de um telheiro no pino do
verão, houve um pai chegado enquanto pôde sê-lo, uma mãe sorridente até se
aferrolhar numa tristeza revoltada. Houve a tragédia. Dez anos de martírio. A
Rita não sabia, nunca soube, não lhe pertenceria saber. Olhei o rosto dela, a
sua expressão assustada e calei o meu silêncio, ou tentei, quis ficar quieto e
não consegui, algo se descontrolou em mim, um arabesco do braço, um meneio do
pescoço, o arrepio a trazer-me de volta as páginas arrancadas do passado que
não queria. Um medo de que este sobressalto pudesse invadir-me durante a arte,
as páginas arrancadas do passado poisando na estante sobre a partitura,
manchando-me a criação, impedindo-me de torcer o destino. Felizmente nunca até
agora, saudades são fraquezas paralisantes.
(Fotografia de Carlos Alberto Cavaco)
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