Houve um tempo em que o mero som da voz dela me acordava todo por
dentro, porque havia uma faísca em cada uma das suas palavras que era como uma
ignição que me punha em brasa. Mas isso era antes de há quatro meses, quando
ela estava naquilo que me dizia e havia verdade entre nós. Depois tudo se
transformou e eu perdi a capacidade de me abrasar ao mesmo tempo que vi
extinguir-se nela a chama que me incendiava. A nossa convivência tornou-se uma
conversa de surdos, como se nos tivéssemos deixado submergir num qualquer óleo
viscoso e esbracejássemos entorpecidos, gritando coisas que nos rebentam dentro
e apenas nos saem da boca como bolhas informes que nada dizem. Nunca fui dotado
para as letras, depois dos catorze anos nunca mais peguei num livro que não
fosse de motores e peças, enriqueci o meu léxico com a prosa de oficina e as
rimas da mecânica. Ela, como quase toda a gente, ouvia-me sempre de cima para
baixo mas gostava de mim e entendia-me, empatizava comigo. Empatizar é uma
palavra que aprendi com ela, como muitas outras que me ensinou à força de me
corrigir e eu deixar, porque gostava dela tanto quanto ela gostava de mim. Ou
mais. A Sónia ocupava-me todo o pensamento quando eu pensava em mim, era quase
a minha identidade, metade da minha identidade. A outra metade.
— Olá.
A voz dela soou tão inerte como um tubo de escape desferrado. Deixei-a
entrar, aproximar-se do sofá, sentir que eu sentia a presença dela junto de
mim.
— Olá – levantei os olhos, não sei se a minha expressão era receio ou
súplica. – O dia está cinzento.
Não estava a referir-me às condições atmosféricas e ela percebeu, mas
olhou para a janela como se não, despejou o olhar para o bairro entardecido.
— Pois. Se calhar é porque começa hoje o outono. Também está mais
fresco.
Aquela
resposta não era a Sónia, era a Sónia desde há quatro meses, quando tinha
deixado de ser a Sónia que eu amava.
(Fotografia de Jorge Figueiredo, no ensaio de A Chave Perdida)
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