Sim, a culpa foi minha. […] A culpa foi minha porque me sentei no sofá
durante a espera, fixei o olhar na bandeja e comecei a pensar nela, na outra,
na conversa que precisava de ter contigo sobre a outra. Por causa de há quatro
meses, por causa dos quatro anos até há quatro meses, por causa de hoje desde
há quatro meses. Por causa de. A culpa foi minha por causa de, desta frase
incompleta, da conversa que precisava de ter contigo sobre a outra e não fui
capaz, não consegui que os quatro anos até há quatro meses e todos os anos
antes dos quatro anos até há quatro meses me deixassem falar. Lembrava-me de te
amar desde sempre, desde o tempo em que comecei a conhecer-me, em que tive
consciência do próprio tempo, porque morávamos na mesma rua, crescemos juntos
naquela rua, eu via-te quase todos os dias porque o acaso permitia e senão eu
forçava a que permitisse, habituei-me a acompanhar-te no caminho para a escola,
habituei-me a gostar do que sentia quando estávamos juntos, habituei-me a
sentir que gostava de ti tanto quanto tu gostavas de mim. Ou mais. E, apesar de
tudo isso, deixei que os quatro meses depois dos quatro anos e de todos os anos
antes dos quatro anos até há quatro meses me impedissem de dizer-te o que
precisava de dizer-te na conversa que precisava de ter contigo sobre a outra.
Não deixei que ficasses a saber o que eu não sabia que não sabias sobre aquele
dia em que. Mesmo quando disseste o que nunca me tinhas dito, do telemóvel, de
me veres a segurar o telemóvel como um criminoso que não larga a arma do crime,
o número a escorrer do visor do aparelho, o número que o ocupava todo, que enchia
a minha mão, que se espalhava por mim adentro numa interrogação de depósito
rompido até à explosão da cegueira que me fez desviar os olhos da Sara no
momento em que. Se tivesses visto o número, talvez ainda possível a conversa
que eu precisava de ter contigo sobre a outra, talvez a bandeja com os copos
largos de pé alto, a garrafa de gin, as águas tónicas e o limão, talvez ainda o
tempo de ir buscar o gelo e dizer toda a verdade.
Mas
não.
(Fotografia de Carlos Alberto Cavaco)
Sem comentários:
Enviar um comentário