domingo, 17 de dezembro de 2017

Ficção XXII - A culpa foi minha (a partir de «A Chave Perdida»)

Sim, a culpa foi minha. […] A culpa foi minha porque me sentei no sofá durante a espera, fixei o olhar na bandeja e comecei a pensar nela, na outra, na conversa que precisava de ter contigo sobre a outra. Por causa de há quatro meses, por causa dos quatro anos até há quatro meses, por causa de hoje desde há quatro meses. Por causa de. A culpa foi minha por causa de, desta frase incompleta, da conversa que precisava de ter contigo sobre a outra e não fui capaz, não consegui que os quatro anos até há quatro meses e todos os anos antes dos quatro anos até há quatro meses me deixassem falar. Lembrava-me de te amar desde sempre, desde o tempo em que comecei a conhecer-me, em que tive consciência do próprio tempo, porque morávamos na mesma rua, crescemos juntos naquela rua, eu via-te quase todos os dias porque o acaso permitia e senão eu forçava a que permitisse, habituei-me a acompanhar-te no caminho para a escola, habituei-me a gostar do que sentia quando estávamos juntos, habituei-me a sentir que gostava de ti tanto quanto tu gostavas de mim. Ou mais. E, apesar de tudo isso, deixei que os quatro meses depois dos quatro anos e de todos os anos antes dos quatro anos até há quatro meses me impedissem de dizer-te o que precisava de dizer-te na conversa que precisava de ter contigo sobre a outra. Não deixei que ficasses a saber o que eu não sabia que não sabias sobre aquele dia em que. Mesmo quando disseste o que nunca me tinhas dito, do telemóvel, de me veres a segurar o telemóvel como um criminoso que não larga a arma do crime, o número a escorrer do visor do aparelho, o número que o ocupava todo, que enchia a minha mão, que se espalhava por mim adentro numa interrogação de depósito rompido até à explosão da cegueira que me fez desviar os olhos da Sara no momento em que. Se tivesses visto o número, talvez ainda possível a conversa que eu precisava de ter contigo sobre a outra, talvez a bandeja com os copos largos de pé alto, a garrafa de gin, as águas tónicas e o limão, talvez ainda o tempo de ir buscar o gelo e dizer toda a verdade.
Mas não.

(Fotografia de Carlos Alberto Cavaco)

Sem comentários:

Enviar um comentário