sábado, 30 de dezembro de 2017

Ficção XXIII - Cadência final (a partir de «A Chave Perdida»)


— Vais estar aqui, quando eu voltar? – perguntei, aflorando a conversa que não queria ter. Porque precisava dela, transparência plana e descomplicada, contraponto oco à densidade das minhas angústias.
— Onde é que havia de estar? Esta casa é minha.
Senti a aceleração irreprimível da cadência final. Não consegui ser agradável, não se pode modificar as notas da partitura.
— Não digas parvoíces, percebeste muito bem – repliquei, áspero. Ela merecia ser preservada. – Quero saber se vais estar à minha espera.
— Porque é que perguntas? Foi assim que perdeste as outras? – o ataque desferido abruptamente, o repentismo da ignorância mascarando uma crueldade ingénua. A Rita era genuína mesmo quando tentava dissimular-se.
— Mais ou menos – respondi, tateando margens de fuga a uma discussão estéril.
— Se calhar tens um jeito especial para escolheres mulheres que te deixam quando as ofendes.
Afastei-me carregando a mala, senti o peso acrescentado da falta do fato de banho, a densa discussão a partir dela. Talvez pudesse comprar um no duty free shop do aeroporto, ou já em Praga, antes do concerto, o importante era não falhar a piscina, na manhã seguinte. Transpus a porta aberta do quarto, tirei o porta-fatos do bengaleiro. Olhei para a Rita do corredor, o túnel de todos os sintomas de solidão, uma distância já imensurável até à pura intimidade dela, perdidas as noites de respirações afinadas, a harmonia orquestrada dos corpos a uma lonjura indizível. Os êxtases prolongados como sinfonias acorrendo à memória como meras recordações sepultadas nos abismos da solidão sem cura. A não ser ela própria, inexorável.
— Pelo menos sempre me pouparam a discussões – fui ainda capaz de dizer.
Abri a porta da rua, reconheci o meu porta-chaves na fechadura, retirei-o.
— Fica com as chaves – atirei-lho, no gesto assertivo de remate do último compasso. – Se eu voltar, bato à porta. Se não abrires, cá me arranjarei.
Saí para o patamar de todas as minhas relações rompidas, as palavras diferentes na mesma frase de todas as despedidas. Não olhei para trás, saudades são fraquezas paralisantes. Premi o botão do elevador, acendi a luz do patamar, vi a figura dela colada à ombreira da porta. Não lhe ouvi os passos, diria que ela se transportou de modo incorpóreo, apenas no desejo de me reter. No seu rosto lívido havia uma súplica vitimizada, o olhar oblíquo era um convite desarmado, o corpo hirto de cariátide dizia uma expectativa sem desgaste.
— Abel… – o timbre colorido não parecia brotar da sua figura exaurida, antes do lusco-fusco escancarado da casa, correntes de ar impedindo a concentração das ideias.
— Sim? – o meu desejo de reagir adiantou-se à minha decisão de controlá-lo.
— Porque é que tu não gozas a vida?
(Fotografia de Carlos Alberto Cavaco)

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