Há um momento em que a própria vida nos trai. Como
se roubasse de volta tudo o que, ao longo de anos, nos prodigalizou: noção de
tempo e espaço, relações e afetos, visão do mundo e ligação às coisas, memória
e história, fruição do presente e anseios de futuro. A absoluta
imprevisibilidade do fenómeno torna inútil qualquer antecipação ou prevenção: o
idoso adapta-se às progressivas limitações físicas no seu processo de
envelhecimento, aceita com certa bonomia os lapsos de memória ou de
encadeamento lógico perante os quais recebe a complacência de todos os que o
rodeiam (afinal de contas, ele não foi sempre um pouco assim?...); mas isto é
outra coisa.
É outra coisa. É um alheamento de si próprio
misturado com a progressiva perda de referências exteriores, é um
entrincheiramento definitivo da consciência num reduto intraduzível para o
próprio. É uma alienação sem regresso, não sabemos o que é. Chamamos-lhe
demência e conjugamo-la em diferentes epítetos, consoante as características
que lhe identificamos ou de acordo com o nome do investigador que a estudou.
Não sabemos o que é. É um flagelo que se abate
sobre o indivíduo sem que ele se dê conta ou, ainda que dê, sem que nada possa
fazer para travar a vertigem rumo ao que o espera: o vazio. Dizemos vazio
porque não sabemos o que é. O próprio, que o experimenta, está incapacitado de
comunicar a experiência; os outros sentem-se incapazes de decifrá-la.
Chamamos-lhe demência e, de um lado ou outro do abismo, vivemos a incompreensão
e o desespero. E a revolta por uma tremenda injustiça.
O Pai, a peça teatral de Florian Zeller posta em cena no
Teatro Aberto, aborda este tema de forma singular: o texto (arguto e sensível) sugere-nos
um olhar sobre a demência na perspetiva do doente que a sofre; a encenação (assustadora
por tudo o que tem de sedutor) arrasta-nos para o seu próprio mundo, onde nos
sentimos tão perdidos como ele. Como ocupar um espaço constantemente alterado?
Como alinhar um tempo entrecortado? Como enfrentar entes queridos que já não
sabemos como são, que não nos veem como somos (ou cremos ser) e se nos tornam
hostis por isso? Como viver numa realidade que permanentemente se confunde e
nos confunde? A personagem do Pai (João Perry enérgico e brilhante, como
sempre!) irrita-nos até à compaixão, enternece-nos até à raiva. As restantes
personagens, à sua volta (um elenco rigoroso, competente e equilibrado), são
aterradoramente parecidas connosco no realismo inoperante, no lógico
analfabetismo. E na angústia. Queremos dar a mão a este Pai e mergulhar com ele no imenso
labirinto de interrogações e medos em que a sua vida se tornou. Mas não sabemos
como. Porque lhe chamamos demência e não sabemos o que é.
E,
a seguir, poderemos ser nós.
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