sábado, 24 de dezembro de 2016

Texto setuagésimo quinto

Noite de Natal.
A consoada era exígua no número de convivas, discreta nas ressonâncias festivas, ampla e profunda no significado que ecoava dentro dele. Os pais e o irmão, família nuclear de sempre, mais o avô materno, que vivia lá em casa e era a maior referência do seu olhar sobre o mundo. De certo modo, sobre si próprio também.
E vinha o tio, irmão da mãe, regressado do Brasil para um apartamento que se avistava da marquise das traseiras, com a tia que, da Madeira, se juntara a ele no Rio e de lá trazia, carregado e indelével, o sotaque açucarado que nele já se esboçava apenas nos finais de frase distraídos. E a filha, brasileira de nascimento e portuguesíssima no vernáculo de todos os seus desígnios. A única prima que ele tinha.
Às vezes vinham o padrinho aristocrata e a madrinha simplesmente alegre, ambos arrastados da infância sonhadora da mãe para partilharem o seu quotidiano de ânsia e resignação. E os avós paternos, que se destacavam em contornos cada vez mais nítidos da incógnita palidez do álbum familiar, como se o mistério fosse atributo próprio da sua condição.
E faltava sempre o outro tio, irmão do pai, tendencialmente desligado de toda a família devido à conduta solitária que o tornava presente apenas a si próprio. Ou talvez nem isso. Mas estava também ali, na sua proverbial ausência.
Noite de Natal.
Ele contemplava, no maduro deslumbramento do seu olhar infantil, aquele improvável encontro de diversidades e estranhezas que, no mistério dos apelos da vida, se aceitavam em laços de família intocáveis. E o Natal era isso, para ele: o encontro espremendo a distância das vidas ensimesmadas, conversas amenas preenchendo os silêncios das suscetibilidades discordantes, risos partilhados acima da baixeza das dissensões. O convívio sobrepondo-se às costas voltadas de não saberem uns dos outros.
Noite de Natal.
A consoada era exígua no número de convivas, discreta nas ressonâncias festivas, ampla e profunda no significado que ecoava dentro dele. Porque ele observava as toscas figurinhas do presépio dispostas numa singela harmonia e, no maduro deslumbramento do seu olhar infantil, via desprender-se delas uma energia de Paz e Vida que construía a cálida beleza do encontro daquela noite.
E desejava aquilo para o mundo inteiro.

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