Somos humanos, detentores de memória e esperança. A
memória prende-nos na direta proporção em que a esperança nos liberta.
Possuidores da primeira, somos possuídos pela segunda. E por isso avançamos. Ou
o contrário e, nesse caso, condenamo-nos à estagnação, ao retrocesso. (No devir
humano, não será toda a estagnação um retrocesso?...)
Somos humanos. Entre a memória e a esperança,
dependemos da imaginação que soltamos no presente e que nos projeta num dos
dois sentidos. Ou sacode-nos entre ambos. Vivemos sobressaltados. Humanos.
Sándor Márai, em As Velas Ardem até ao Fim, mergulha-me nesta reflexão. Henrik, o
general amargurado que vive quarenta e um anos enredado na imaginação de um
passado que não consegue largar, toma-me pela mão, qual Orfeu numa descida aos
infernos. Não sei se busca a libertação, pois não se vislumbra qualquer
esperança no seu discurso compulsivo (encantador como poesia lírica) perante
Konrád, o amigo de infância regressado de quatro décadas de distância. E
Krisztina, a sua mulher falecida, não é uma Eurídice a resgatar, apenas mais uma
peça que precisa de encaixar do inacabado enigma que o mantém vivo. Não para se
libertar, porque não se vislumbra esperança, antes para acabar, adormecer a
imaginação que o enreda na memória e extinguir-se. Como as velas.
Henrik vive na memória, rígida como a sua intrínseca
condição de general, fechada como o seu enclausuramento, obsessiva como a sua
necessidade de falar. Está preso. As velas ardem até ao fim, numa corrida
contra o tempo. Konrád move-se na esperança, correu mundo como mãos de artista
sobre as teclas do piano, regressa ao passado munido de um silêncio redimido. As
velas ardem até ao fim num esvaimento libertador.
O livro de Sándor Márai é belo na sua simplicidade,
simples na sua plenitude, pleno na sua beleza. Dobra-se sobre si próprio como
uma memória, solta-nos a imaginação como um presente, deixa-nos num vazio de
consumação. As velas ardem até ao fim. E depois, a esperança?...
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