Geraste-te no meu silêncio, fecundado por este imparável
olhar que faz entrar por mim adentro toda a visão do ser que já me está no
íntimo muito mais. Cresceste-me no casulo das entranhas, metamorfoseaste-te de
perceção em palavra e não me deste alternativa. Nasceste num gesto generoso de
mim, espalhei-te em volta para que soltasses o primordial vagido na boca de
todos os que então te leram em voz alta, sentados em círculo no segredo do chão,
rodeando o fogo sagrado que havia de fazer-te crescer.
Eras texto de teatro mas não te bastava. A energia
toda que eras não podia conter-se na pequenez imberbe das palavras escritas. Por
isso te implantámos em cena, demo-nos a ti nas palavras e intenções em que te
deste a nós, invocámo-nos em ti naquilo em que te convocavas para nós.
Amadurecemos-te até seres adulto e crescemos por dentro na tua maturação. E estreámos-te
e representámos-te. Viveste plenamente na vida plena que nos foste.
Foi há onze anos.
E depois morreste. Sem queixumes, pois sabias que
essa era a tua sorte destinada. E um pouco de nós morreu contigo no derradeiro apagar
das luzes da última cena, ensinaste-nos a morte na vida que nos deste: «o
teatro é a aprendizagem da morte, porque é a experiência das coisas que
acabam». Sabemos que essa é a nossa sorte destinada.
Foi há onze anos.
Mas ficaste-me tanto cá dentro, desde aí!... Coloriste-me
a memória, chamaste-me repetidamente nos interregnos em que ignorava o fogo
sagrado porque outros lumes me queimavam, ecoaste-me nas entrelinhas de outros
textos que fui celebrando. Ficaste-me tanto!... (Não é de estranhar: geraste-te
no meu silêncio, cresceste-me no casulo das entranhas, nasceste num gesto
generoso de mim… Como poderia ser de outro modo?)
Por isso agora te ressuscito. Convoco-te mais uma
vez do sepulcro em que te engavetei, quero trazer-te de volta à vida para que
de novo me faças viver. Transfiguro-te para que sejas outro sem deixares de ser
o mesmo, porque assim é a natureza e assim é o homem, e tu és Natureza e tu és
o Homem.
Ressuscito-te agora, porque és texto de teatro e
não te basta. A energia toda que és não pode conter-se na ridícula mortalidade de
uma lembrança saudosa. Vamos pôr-te em cena outra vez para que outra vez vivas
nas palavras e intenções que digamos e na nossa forma de dizê-las, porque tu és
tudo isso que nós somos. E para que vivas também do outro lado, nos olhares que
observem, nos corações que se emocionem, nas entranhas que estremeçam. Porque tu
és tudo isso também.
És a Natureza e o Homem. E todos precisamos de ti!
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