domingo, 22 de outubro de 2017

Texto octogésimo sexto

Encararam-se demoradamente, os olhares pesados de emoções reinventadas. Encostada à parede, a música trotava num crescendo que germinava neles uma ira fabricada, tecida com memórias e acasos. Sustentaram os olhares teimosos, despindo-se das circunstâncias do dia na veste negra inexpressiva que envergavam. Seguraram a fúria até ao limite, nos punhos cerrados daquela fixação obstinada.
E, de repente, a música soltou-se numa rebentação, explodiu e inundou a sala acolchoada. E eles atiraram-se um ao outro, libertaram-se de si próprios num confronto que os atou, peles friccionadas num atrito de vontades, corpos entrelaçados numa mistura de emoções. Rolaram pelo chão nas carnes sobrepostas, manietaram-se nos golpes demolidores, prenderam-se num frenesim de fugas. A música não baixava, não reduzia o caudal de submersão. E eles entregaram-se na luta em que se esqueceram de quem eram, alheios a espaço, tempo e circunstância. Transportaram-se das suas vidas, inventaram-se noutra dimensão, transpuseram o portal. Libertaram-se.
No fim, exaustos da viagem, descansaram arquejantes nos suores misturados da metamorfose. Eram espíritos fundidos num magma de corpos. Mas logo se reergueram gratificados no cansaço que os revigorava, encararam-se por um instante, confortados na consciência de já serem outros. Livres.
E, afastando-se, perfilaram-se nas devidas posições. O exercício terminara. Chegara o momento de ensaiar a primeira cena.

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