Encararam-se demoradamente, os olhares pesados de
emoções reinventadas. Encostada à parede, a música trotava num crescendo que
germinava neles uma ira fabricada, tecida com memórias e acasos. Sustentaram os
olhares teimosos, despindo-se das circunstâncias do dia na veste negra
inexpressiva que envergavam. Seguraram a fúria até ao limite, nos punhos
cerrados daquela fixação obstinada.
E, de repente, a música soltou-se numa rebentação,
explodiu e inundou a sala acolchoada. E eles atiraram-se um ao outro,
libertaram-se de si próprios num confronto que os atou, peles friccionadas num
atrito de vontades, corpos entrelaçados numa mistura de emoções. Rolaram pelo
chão nas carnes sobrepostas, manietaram-se nos golpes demolidores, prenderam-se
num frenesim de fugas. A música não baixava, não reduzia o caudal de submersão.
E eles entregaram-se na luta em que se esqueceram de quem eram, alheios a
espaço, tempo e circunstância. Transportaram-se das suas vidas, inventaram-se
noutra dimensão, transpuseram o portal. Libertaram-se.
No fim, exaustos da viagem, descansaram arquejantes
nos suores misturados da metamorfose. Eram espíritos fundidos num magma de
corpos. Mas logo se reergueram gratificados no cansaço que os revigorava,
encararam-se por um instante, confortados na consciência de já serem outros. Livres.
E,
afastando-se, perfilaram-se nas devidas posições. O
exercício terminara. Chegara o momento de ensaiar a primeira cena.
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