sábado, 24 de dezembro de 2016

Texto setuagésimo quinto

Noite de Natal.
A consoada era exígua no número de convivas, discreta nas ressonâncias festivas, ampla e profunda no significado que ecoava dentro dele. Os pais e o irmão, família nuclear de sempre, mais o avô materno, que vivia lá em casa e era a maior referência do seu olhar sobre o mundo. De certo modo, sobre si próprio também.
E vinha o tio, irmão da mãe, regressado do Brasil para um apartamento que se avistava da marquise das traseiras, com a tia que, da Madeira, se juntara a ele no Rio e de lá trazia, carregado e indelével, o sotaque açucarado que nele já se esboçava apenas nos finais de frase distraídos. E a filha, brasileira de nascimento e portuguesíssima no vernáculo de todos os seus desígnios. A única prima que ele tinha.
Às vezes vinham o padrinho aristocrata e a madrinha simplesmente alegre, ambos arrastados da infância sonhadora da mãe para partilharem o seu quotidiano de ânsia e resignação. E os avós paternos, que se destacavam em contornos cada vez mais nítidos da incógnita palidez do álbum familiar, como se o mistério fosse atributo próprio da sua condição.
E faltava sempre o outro tio, irmão do pai, tendencialmente desligado de toda a família devido à conduta solitária que o tornava presente apenas a si próprio. Ou talvez nem isso. Mas estava também ali, na sua proverbial ausência.
Noite de Natal.
Ele contemplava, no maduro deslumbramento do seu olhar infantil, aquele improvável encontro de diversidades e estranhezas que, no mistério dos apelos da vida, se aceitavam em laços de família intocáveis. E o Natal era isso, para ele: o encontro espremendo a distância das vidas ensimesmadas, conversas amenas preenchendo os silêncios das suscetibilidades discordantes, risos partilhados acima da baixeza das dissensões. O convívio sobrepondo-se às costas voltadas de não saberem uns dos outros.
Noite de Natal.
A consoada era exígua no número de convivas, discreta nas ressonâncias festivas, ampla e profunda no significado que ecoava dentro dele. Porque ele observava as toscas figurinhas do presépio dispostas numa singela harmonia e, no maduro deslumbramento do seu olhar infantil, via desprender-se delas uma energia de Paz e Vida que construía a cálida beleza do encontro daquela noite.
E desejava aquilo para o mundo inteiro.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Décima sétima alegoria

vela
apagada chama
como olhos fechados
a expectativa noite
dentro sabendo que o dia
virá um dia

vela
acesa chama
como derrame estremunhado
o apelo acordado
grito aberto
no tempo iluminando
o espaço da espera
ansiosa a manhã
virá um dia

outra vela e mais
outra até
aos quatro ventos quatro
tempos da espera
perdão
             fé
                  alegria
                              anúncio
e outras
coisas mais

e depois brota
o verbo
queima a estrela
brilha dentro
de mim a gruta

nascer
de novo escrever
a vida.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Texto setuagésimo quarto

Somos humanos, detentores de memória e esperança. A memória prende-nos na direta proporção em que a esperança nos liberta. Possuidores da primeira, somos possuídos pela segunda. E por isso avançamos. Ou o contrário e, nesse caso, condenamo-nos à estagnação, ao retrocesso. (No devir humano, não será toda a estagnação um retrocesso?...)
Somos humanos. Entre a memória e a esperança, dependemos da imaginação que soltamos no presente e que nos projeta num dos dois sentidos. Ou sacode-nos entre ambos. Vivemos sobressaltados. Humanos.
Sándor Márai, em As Velas Ardem até ao Fim, mergulha-me nesta reflexão. Henrik, o general amargurado que vive quarenta e um anos enredado na imaginação de um passado que não consegue largar, toma-me pela mão, qual Orfeu numa descida aos infernos. Não sei se busca a libertação, pois não se vislumbra qualquer esperança no seu discurso compulsivo (encantador como poesia lírica) perante Konrád, o amigo de infância regressado de quatro décadas de distância. E Krisztina, a sua mulher falecida, não é uma Eurídice a resgatar, apenas mais uma peça que precisa de encaixar do inacabado enigma que o mantém vivo. Não para se libertar, porque não se vislumbra esperança, antes para acabar, adormecer a imaginação que o enreda na memória e extinguir-se. Como as velas.
Henrik vive na memória, rígida como a sua intrínseca condição de general, fechada como o seu enclausuramento, obsessiva como a sua necessidade de falar. Está preso. As velas ardem até ao fim, numa corrida contra o tempo. Konrád move-se na esperança, correu mundo como mãos de artista sobre as teclas do piano, regressa ao passado munido de um silêncio redimido. As velas ardem até ao fim num esvaimento libertador.
O livro de Sándor Márai é belo na sua simplicidade, simples na sua plenitude, pleno na sua beleza. Dobra-se sobre si próprio como uma memória, solta-nos a imaginação como um presente, deixa-nos num vazio de consumação. As velas ardem até ao fim. E depois, a esperança?...

domingo, 27 de novembro de 2016

Texto setuagésimo terceiro

Devia haver uma idade mínima, pensei. Olhei a sinistra caixa de madeira que te guardava, olhei-te para lá da cobertura dela, branca da tua pureza, consistente da tua grandeza inocente, acetinada da tua simplicidade intangível. Olhei-te num último abraço impossível. Devia haver uma idade mínima.
E deixei-me escorrer de mágoa e revolta por entre a multidão anónima que estava ali porque sim, porque não havia como não. Como eu. Cabeças pendentes de quem não acredita no que sabe, corações ao alto de quem sabe no que acredita, choros convulsivos de quem quer acreditar mas não sabe, corpos rígidos no choque de emoções de quem não sabe nem acredita. E aqueles que não sabem por que acreditam. E todos os outros. E eu.
Devia haver uma idade mínima, continuo a pensar. Aos doze anos ninguém viveu ainda o bastante. Ninguém se deu a conhecer ao mundo a ponto de ser lícito deixá-lo órfão de si. Por entre a multidão anónima, diante da sinistra caixa de madeira que te guardava, estremeci na busca de uma legitimidade maior que a sombria nuvem de injustiça e erro de tudo isto. Devia haver uma idade mínima, continuo a pensar.
Mas não. Não há requisito para chegar, nem fórmula para a duração da permanência ou para as condições dela, nem nomeação para a partida ou atestado que a impeça. Espreitando por entre os muros da lógica controladora que erguemos em volta da nossa existência, temos de abandonar-nos ao deserto do mistério que se estende para lá deles. E nos envolve na violência de tempestades de areia.
Que sabemos? Em que acreditamos? Escorrem-nos por entre os dedos, como finos grãos, as angústias, as revoltas e os medos. E as interrogações que não conseguimos formular. E os consolos a que tentamos agarrar-nos. Não há idade mínima para ninguém. Haverá uma idade certa para cada um? Não sei, apenas acredito. Porque sim, porque não há como não.

domingo, 20 de novembro de 2016

Texto setuagésimo segundo

O teatro é o espelho da vida. Dramaturgos, encenadores e atores (ajudados por todas as equipas técnicas e de produção) transportamos o mundo real para o palco, recriamo-lo em maneira artística, transformamos os factos em teatro. E convidamos o público a ver, de certa forma obrigamo-lo a ver-se no que vê, fazemo-lo sair da sua realidade para confrontá-la e, assim, regressar a ela muito mais. Reconciliado? Ou revoltado?...
O teatro é o espelho da vida. Ou o contrário. Dramaturgos, encenadores e atores (ajudados por todas as equipas técnicas e de produção), ao transformarmos a realidade em arte somos transformados por ela: de modo fugaz e inócuo, primeiro, como num sonho que se esquece quando dele se acorda; a seguir mais profundamente, com a insistência refletida da continuidade; por fim, de modo visceral, porque o mergulho no abismo de luz se torna um vício e tudo em nós (mente, espírito e corpo, razão, emoções e desejos) depende dele. E convidamos o público a esta metamorfose. Porque é linda.
A vida é o espelho do teatro. E o contrário. O Autor, de Tim Crouch, escreve-se na fronteira desta dicotomia. E a versão do Palco Treze (em cena no Auditório Fernando Lopes Graça, no Parque Palmela, em Cascais) joga esta escrita numa espécie de tabuleiro de xadrez sem quadrículas marcadas, onde o movimento de todas as peças parece entregue ao livre-arbítrio de cada uma, que nunca está sozinha. É assim a vida, por que razão não há de ser assim o teatro? Liberdade e coragem. E relação. É assim o teatro, por que razão não há de ser assim a vida?
É excelente o processo (não consigo chamar-lhe espetáculo!...) do Palco Treze: honesto na simplicidade da dramaturgia, audacioso na «crueldade» da encenação, verdadeiro na exposição dos atores. Envolvente na subtileza com que mergulha o público no «tanque de flutuação» do jogo de espelhos. Perturbador.
O teatro é o espelho da vida. Ou o seu contrário. Por isso precisamos tanto dele. Liberdade e coragem. E relação. Sermos autores de nós próprios. Com os outros.

domingo, 6 de novembro de 2016

Texto setuagésimo primeiro

Um livro é mais que a escrita dele. É uma carga de memórias que se arrasta como armas enferrujadas de batalhas perdidas (todas as batalhas são perdidas em não se ter conseguido evitá-las…); é a celebração dos escombros do vivido e a arquitetura possível a partir deles, numa espécie de grito reciclado de que vale a pena continuar; é um reduzirmo-nos a cinzas amargas ou doces e renascermos delas, num estremecimento de libertação de um passado que quer prender-nos por ser amargo ou doce. Um livro é uma sepultura e uma catarse, um último suspiro largado num vagido primordial, um fim que se torna princípio.
Um livro também é mais que a leitura dele. É um mergulho em apneia, uma viagem sufocante para dentro de nós a partir de fora; é um estilhaçamento da alma contra um espelho que em nós se quebra nas páginas que nos desmontam; é um regresso à superfície, a possibilidade emergente de um novo olhar, limpo das velhas escamas arrancadas pela torrente das palavras que desfilam por nós como cardumes de revelação. Um livro é um naufrágio e a boia de socorro, uma deriva presa à jangada de salvação, uma submersão que resgata.
Um Amor Morto é um livro bem escrito. É muito mais que um livro bem escrito. É tudo o que digo acima. E mais ainda. A sua escrita ainda escorre em sangue e lágrimas. A minha leitura dele eleva-se em fumos de incenso.

domingo, 30 de outubro de 2016

Décima sexta alegoria

Não desistes
Negamos-te uma vez
e outra no azedume
dos nossos medos de nós
fracos pequenos grãos
de poeira ensimesmados

Não desistes
Cravamos-te uma vez
e outra na violência
dos nossos ódios dos outros
ódios que falam línguas
incompreendidas das torres de Babel
esquecidas das paisagens de Éden
perdidas

Não desistes
Ofereces-te livre em sorrisos
de sol que gozamos
em excessos apenas
Derramas-te de graça em sementeiras
de chuva que maldizemos
nas tempestades que colhemos
Ingratidões ao vento de não
saber agradecer?

Não desistes
És no que amas
em nós amas
no que és
em ti. Amor e
só.

Não desistes.

domingo, 16 de outubro de 2016

Texto setuagésimo

Loucura. A verdade em que vivemos. Demência. O excesso que de nós extravasa. Escrever sobre isso. A necessidade que em nós grita. A ânsia de entender, o desejo de estar próximo.
Mens Sana. Oito contos que, na diversidade própria da variedade de autores, abordam este universo que é de nós todos. Com coragem, porque nos textos há uma força de catarse: palavras sem filtro expostas no espelho das páginas em que se estendem. Sem comiseração, porque em cada história há um vigor de manifesto: não se lamenta a condição humana, aceita-se para sobre ela construir as existências a haver.
Mens Sana. A literatura – universo tão mais verdadeiro que a realidade! – aproxima-nos da loucura em nós, solidariza-nos com a demência nos outros. Humaniza-nos. E para isso ela serve. Transcende-nos. E a isso ela aspira. Mobiliza-nos. E por isso ela vence. 
Mens Sana. Oportuna publicação da Editora Livros de Ontem. Escrita cativante. Urgente leitura.

domingo, 2 de outubro de 2016

Décima quinta alegoria

avanço
passo a passo
o olhar baixo
poisado na terra de onde o corpo se ergue

avanço
passo a passo
os pés fincados no alto
de um destino à espera

avanço
passo a passo
a alma suada na depuração da busca
enxuta de cansaços
no abraço do corpo
carregado
                  imparável

avanço
passo a passo
até mais não
o fim

quando?

domingo, 25 de setembro de 2016

Conversando... sobre um concerto: Projecto Geo no Palácio da Ajuda



A sala cheia. Uma cúpula pintada a fresco num trompe l’oeil colorido deu guarida à  multidão acumulada em entrada livre, oriunda de uma liberdade variada e simples, também ela colorida na diversidade de expressões e atitudes. Parecia não haver espaço naquele ovo barroco engalanado de genuína expectativa.
E, de repente, a música. Uma explosão de sons, a linguagem do universo declamada por instrumentos do mundo, as sonoridades espalhadas no ar, os ecos à solta pelo íntimo de cada um dos ouvintes. Harmonia e êxtase. 
E houve mais. Houve palavra e dança, a voz e os corpos vogando nas ondas daquele instrumental vertiginoso. Tão belos se disseram os corpos, ao som da música! Tão alto se elevaram as almas nos corpos que tão belos se disseram!
A sala cheia. Harmonia e êxtase. Um concerto que nos moveu por dentro como uma erosão de fundo do mar. Que nos embalou, que nos arrancou de nós para a transcendência e nos repôs mais cheios. E agradecidos. 
A sala cheia. Harmonia e êxtase. Foi um concerto do PROJECTO GEO.
Eu estive lá!

domingo, 18 de setembro de 2016

Texto sexagésimo nono

Apresentar um livro. Coisa diferente de apresentar-se num livro. Falar de si a propósito do que se escreveu é ato bem distinto de falar de si naquilo que se escreveu. É desvelar um mistério, revelar um segredo e de certo modo perdê-lo por isso, ganhar um aplauso no sacrifício do sigilo aconchegante. É trocar a brasa pela labareda. É uma obscenidade vertiginosa e inevitável neste mundo arquitetado na imagem, avassalado na visibilidade e na mediação. O escritor vive no recato, mas não sobreviverá nele, por isso resigna-se a alternar-se entre a clausura e o alarde. Entre o engavetamento libertador da escrita e a tirânica necessidade de anunciá-la, o escritor fecha os olhos e suspira, na nostalgia de um tempo/espaço primordial em que compor um texto era apenas brincar no quarto da infância, recolher o mundo inteiro e reinventá-lo à porta fechada, alheio às gritarias lá de fora. Só porque sim.
O escritor diz-se no que escreve, porventura sente-se desdizer a escrita ao ver-se constrangido a falar dela. Mas tem de. E gosta.

domingo, 11 de setembro de 2016

Texto sexagésimo oitavo

Há uma inteligência poética: um olhar colorido e diferente, a perceção da realidade como uma floresta de símbolos.
Há uma crença que nos mina por dentro: a formulação de um sentido para a existência ou a descoberta dele, uma noção de sobrevivência e destino. Uma utopia, necessariamente, que nos permite navegar num mundo que não encaixa.
Há uma vontade de gritar por escrito: um amor ao desenho das palavras e à sua alma, um embalo quente no eco da sua conjugação, que nos consolida em tudo o que nos desmorona. A impossibilidade de não derramar em texto essa energia inteira que nos habita.
Há um desejo de ser lido: o reconhecimento de uma incompletude, a certeza de que só nos completamos naquilo em que nos prolongamos nos outros, os leitores, que se acrescentam daquilo que bebem de nós.
Há uma necessidade de intervir: um punho fechado erguido em discurso na luta pela transformação do mundo a partir do homem, dos factos a partir da mente, das ideias a partir do coração.
Há um escritor. E a escrita à espera de.

domingo, 4 de setembro de 2016

Texto sexagésimo sétimo

«O fruto do silêncio é a oração. O fruto da oração é a fé. O fruto da fé é o amor. O fruto do amor é o serviço. O fruto do serviço é a paz».
Faço silêncio, calo os gritos interiores que me dispersam. Viro-me para dentro, ato a venda nos olhos que me descola a cegueira, mergulho na quietude que me encontra em mim.
O fruto do silêncio é a oração. Elevo-me nesta profundeza em que submerjo. Transcendo-me num face a face com o divino que em mim habita fora de mim. Percebo-me na alma de mãos postas, vejo-me a mim próprio mais do que eu mesmo. Vejo-me outro, o Outro em mim.
O fruto da oração é a fé. Acolho a Presença que me enche, aceito o Nome que me desvenda. Confesso-me crente no Ser que me justifica e resolve, a plenitude que me transborda, que me faz inteiro em mim e parte de um Todo além de mim. Que me dá sentido.
O fruto da fé é o amor. Vejo o sentido como um desafio que me projeta, uma expansão, a mão estendida num desejo de abraço rumo ao clamor de mil olhares sedentos. Um impulso que vem de dentro mas nasce fora, porque o Todo feito das partes grita na parte que se quer para o Todo.
O fruto do amor é o serviço. Largo a correr ao encontro, semeio um trilho de brasas que me fere os pés, não me deixa parar em mim. Pulverizo-me em gestos desde este núcleo de transcendência que me unifica. Centrado no Outro em mim, descentro-me para o Eu de cada outro.
O fruto do serviço é a paz. Encho-me nesta troca que me esvazia de tudo o que sou, foco-me nela como única verdade que me salva. Porque sou feito do que busco no outro, entrego-lhe o que me falta para ser mais eu. E sinto a tranquilidade expandir-se à minha volta. Alheio ao ruído, surdo aos gritos interiores que me dispersam, repouso no aconchego da dádiva, no sorriso da partilha. Na respiração profunda quieta da missão cumprida. No silêncio. 
O fruto da paz é o silêncio. E tudo recomeça.

domingo, 28 de agosto de 2016

Texto sexagésimo sexto

Com que palavras se diz a nossa fragilidade? Dizemos «terramoto» para lembrar a tragédia de múltiplas vidas soterradas nos escombros de décadas de edificação, ou simplesmente no acaso de estar ali. Dizemos «incêndios» para gritar a misteriosa injustiça dos infernos deflagrados a horas mortas que reduzem a cinzas os sonhos de tantas horas vivas, pondo vidas em risco durante horas infindas. Dizemos «terrorismo» para denunciar os incompreendidos fanatismos mundiais que camuflam as nossas intolerâncias de bairro. Dizemos «guerra» para nos revoltarmos contra os ódios seculares que massacram povos a uma escala numérica maior que as nossas desavenças familiares. Dizemos «cancro» para chorar a impotência contra todos os monstros que crescem dentro de nós mesmos. E dizemos tantas outras palavras que soam a becos sem saída, nesta ânsia de salvação que nos corre nas veias.
Mas não conseguimos dizer «culpa», porque raramente sabemos a quem atribuí-la. Por isso dizemos «humanidade», que é talvez a forma mais descomprometida de justificarmos a nossa fragilidade.
O problema… é que queremos mais.

domingo, 21 de agosto de 2016

Texto sexagésimo quinto

Quero louvar-te, deus de todos os nomes e de todos os credos, da humanidade inteira e de todos os seres, da natureza viva e inanimada, de todo o visível e invisível, do imenso existente e do muito mais que há de existir. Quero afirmar que acredito que és e que estás comigo, acredito na tua essência em mim e na minha existência em ti. E sei que ambas me ligam a todos os seres e a tudo.
Como gostaria de ter palavras que dissessem a gratidão que sinto por toda a energia que derramas sobre mim na minha própria vida!... Sinto todos os dias um manancial de esperança e festa brotando do meu íntimo e sei bem que, nascendo em mim, este rio não é criação minha, ainda que não possa correr fora de mim. Porque eu sou na medida da inundação dele e ele apenas pode ser na minha vontade de permiti-lo. E, como eu, todos os seres. Pois tudo vem de ti.
Por isso me curvo diante de ti, deus de todos os nomes e credos, encolhido no remordimento dos vazios todos que se expandem por mim adentro e me fazem pouco mais que uma falsa vontade de existir em ti. Peço-te perdão por todo o sangue destruidor que derramo nos fluidos vivificadores que retenho pelo medo ignóbil de perder-me ao transbordá-los. Peço-te perdão por não saber nem arriscar ser mais feliz do que esta ideia mesquinha de satisfação própria que compreendo e aplico à minha limitada existência. Peço-te perdão por não ser capaz. E, como eu, todos os seres. Humanos.
E hoje, neste dia que é mais um e será o último para muitos de nós, inscritos no mistério de um tempo ignoto, entrego-te a inteira família humana, esta multidão de peregrinos que busca salvação por todos os caminhos possíveis. E pelos impossíveis também, quando não há outros. Entrego-te a gente toda, fonte e sinal de vida, da tua vida em nós, das nossas vidas em ti. Entrego-te todas as famílias do mundo, de qualquer número e género, pois todas são exemplo ou anseio de comunhão e amor. Entrego-te a minha família, que brota de mim como eu broto de ti, que vive em ti como eu vivo nela. Que amo mais que tudo, na profundidade espiritual desta proximidade carnal. 
E consagro-te enfim, deus de todos os nomes e credos, todos os seres do universo que, não sendo humanos, são minha família também. Toda a natureza viva e inanimada, todo o visível e invisível, o imenso existente e o muito mais que há de existir. Quem dera saibamos, todos juntos, construir e preservar a harmonia cósmica por ti sonhada. Pois tudo vem de ti e a ti regressa.

domingo, 5 de junho de 2016

Conversando... sobre «Pena Máxima»

Toda a obra de ficção literária conta uma história no que diz, guarda um segredo no que quer dizer com o que diz e é portadora de uma verdade na mundividência que suporta o que quer dizer com o que diz.
Pena Máxima, a meu ver, é um livro que pode ser lido e apreciado em qualquer destes três níveis – porventura noutros que se lhes descubram – e em qualquer deles é suscetível de uma leitura de sentido(s).
Por isso mesmo, é um livro que pode ser debatido, conversado depois de lido. Como eu gostaria de receber ecos dos meus leitores, discutir apreciações, partilhar pontos de vista!...
Fica o desafio. Quem o aceita?...

domingo, 29 de maio de 2016

Texto sexagésimo quarto

O valor de um gesto mede-se pelo seu alcance libertador, não pelo desenho que o limita. Tomar-te a mão direita na minha mão esquerda, enlaçar-te pela cintura com a minha mão direita enquanto poisas a tua esquerda sobre o meu ombro, trocarmos olhares no brilho daquela cumplicidade gémea que só nós sabemos. Esperar, no equilíbrio dos corpos direitos, entre a tensão e o desembaraço. Mover-me, soltar os passos na cadência da música, conduzir-te nos requebros que desenhamos dentro do exíguo espaço que o mundo nos permite. E recordar: os corpos arriscados na solenidade airosa do voltear da valsa, a mente focada no alcance do gesto. A memória.
O valor de um gesto mede-se pelo seu alcance libertador, não pelo desenho que o limita. Tomar o teu corpinho recém-nascido na trémula carícia das minhas mãos juntas, comovidas. Olhar-te sabendo que ainda não podes ver-me, sussurrar o teu nome acreditando que reconheces a minha voz desde antes, desde sempre. Abraçar-te no mero aperto dos dedos a que a tua pequenez me limita. E sonhar: os corpos constrangidos pela desproporção que os afasta, a mente liberta nos horizontes sem fim onde poderemos sempre encontrar-nos.
O valor de um gesto mede-se pelo seu alcance libertador, não pelo desenho que o limita. Tomar nas mãos o teu corpinho recém-nascido vale toda a minha vida, tal como enlaçarmo-nos na solenidade airosa do voltear da valsa. São gestos presos um ao outro pela corda dos anos, unidos pelos dias desses anos, pelas horas desses dias, pelos minutos dessas horas. São o mesmo gesto, que nunca deixei de fazer. E são sempre outros, porque me transformo na continuidade de fazê-los, porque me transformas na continuidade de fazê-los.
O valor de um gesto mede-se pelo seu alcance libertador, não pelo desenho que o limita. Senti que te libertava para a vida que não sabias quando tomei nas mãos o teu corpinho recém-nascido. E agora sinto que te liberto para a vida que eu não sei, ao enlaçar-te e conduzir-te nos requebros da valsa. Chamam-lhe «Baile de Finalistas» e ajustam-lhe o ritual burguês desta dança de pai e filha como um corolário de qualquer coisa. Mas enganam-se os que veem nisto apenas a convenção de um desenho fechado. Porque o compasso ternário em que quase rodopiámos é um recomeço, a forma aberta de uma espiral de vida em que te tornaste verdadeiramente livre. E resta-me continuar, agora a uma justa distância, a repetir o mesmo gesto outro. E olhar contigo, na cumplicidade gémea que só nós sabemos, os horizontes sem fim onde poderemos sempre encontrar-nos.

domingo, 22 de maio de 2016

Ficção XVII - Aqui (do livro «Pena Máxima», excerto do capítulo 4)

Ainda estou debruçado sobre a mesa, colocando o cinzeiro na rigorosa posição que lhe cabe, quando percebo que ela acaba de chegar. Não é o toque quase impercetível dos sapatos de salto médio no sobrado, nem qualquer outro ruído ou indício, que me dão a noção da sua presença. Trata-se de uma intuição apurada, que sei ativar em grau absoluto nestas circunstâncias, que me permite captar tudo o que ocorre no espaço envolvente.
Sem endireitar o corpo, ergo a cabeça muito devagar, fixando o olhar na parede espelhada para observar o reflexo da imagem dela, ao fundo, à esquerda, no local da porta, o único acesso de entrada. Sem denunciar qualquer emoção no meu rosto de uma inexpressividade rigidamente controlada, não deixo de apreciar a figura dela, simultaneamente frágil e curiosa, parada junto à porta numa posição estática que parece animada por um impulso de locomoção, como se, dentro dela, o receio daquilo que a aguarda meça forças com o desejo de avançar abreviando a espera.
— Boa tarde – digo, endireitando-me. – O meu nome é Damião. Sou o diretor.
— Boa tarde – responde ela, na sua voz cristalina onde é notório um certo nervosismo. – O meu nome é Cândida, sou…
— Sim, eu sei – interrompo, afastando-me para o lado oposto, como que abrindo todo o espaço da sala para que ela avance. – É aqui. Entre.
Ela entra, olhando para todos os lados com a lentidão de uma cautela premeditada. Move-se numa elegância tolhida dentro do tailleur preto que, indubitavelmente, confere à sua figura esbelta um toque de sedução que virá a revelar-se apropriado. Boa ideia, o tailleur preto. Transformo a inexpressividade do meu rosto num vago esgar de perversão e cobiça, no intuito de demonstrar o efeito provocado pela entrada dela. Cândida, porém, parece não reparar, perdida na observação dos limites do espaço e sem demorar na minha pessoa o mínimo relance.
— Aqui?... – diz ela, em modo evasivo, traduzindo uma surpresa misturada de insegurança. – Esta sala tem um ar tão frio…
Acerca-se da mesa e varre-a com um longo olhar, como se o tampo de fórmica ilustrasse, com a sua lisura monocromática, a frieza do local. Poisa nela a carteira que traz ao ombro e a pasta que segura na mão, deixando os dois volumes um pouco deslocados para o lado direito, junto da cadeira mais encostada, conforme era sugerido pelo posicionamento do cinzeiro no lado oposto. Depois, o olhar dirigido para a parede de vidro espelhado mas perdido num ponto indiferenciado à sua frente, contorna a mesa como se navegasse à bolina sem destino conhecido. Aproxima-se da parede e franze a testa, carregando a expressão do olhar como se quisesse ver através dela.
— E este espelho…
Não se percebe se manifesta um desagrado, exprime um receio ou pronuncia uma interrogação. Condimento a cobiça perversa do meu rosto com uma pitada de desdém.
— Você deve ser muito nova – comento, traduzindo na voz toda a intensidade da minha expressão facial. – O que é que esperava? Sofás de cabedal, reposteiros de veludo, uma janela com vista para o mar?...
Com passos largos e dominadores, aproximo-me da mesma parede, fitando Cândida a uma distância calculada.
— Isto é uma prisão, não é um hotel de luxo – continuo. E, após uma breve pausa, acrescento, num tom de desabafo melífluo: – Já é uma sorte poder entrevistá-lo assim, numa sala privada.
— Eu não lhe chamo sorte – a voz dela procura afirmar-se com maior segurança. – Trata-se de condições de trabalho. Sabe perfeitamente que eu recusaria entrevistá-lo se não fosse assim, numa sala privada.
Enquanto fala, aproxima-se da mesa pelo lado onde largou a carteira e a pasta de mão. Apoia-se na cadeira que está encostada à cabeceira e finca nela os dedos com a força de quem pretende marcar uma posição.
— Penso que a redação do jornal, que, segundo creio, falou diretamente consigo, foi clara quando combinou as coisas – prossegue, encarando-me, observando o modo como deixo o meu rosto abrir-se num sorriso malicioso. – O que foi?
— Ninguém falou comigo – replico, olhando na direção da parede espelhada e dando um passo atrás, como pretendendo alcançar a visão do reflexo de ambos num só olhar. – Houve apenas telefonemas em que vozes anónimas se cruzaram num entendimento circunstancial. A redação do jornal combinou as coisas com os serviços prisionais, mas… – a pausa permite-me uma rotação felina sobre os calcanhares, para encará-la diretamente – você e eu é que estamos aqui. Eu é que preparei o encontro e você é que vai falar com ele.
Acerco-me dela, numa deslocação sorrateira que acentua a intenção maliciosa da pausa do meu discurso.
— Não sei se ele achará muita… piada a esta entrevista – prossigo, já muito perto dela. – Nem sei se você achará muita piada.
Passo por trás dela, numa proximidade de tal modo insinuante que os nossos corpos quase se roçam. Sinto o impacto do perfume baunilhado dela como um calor doce e provocante que alastra por mim, despertando sensações e desejos. Ela dir-se-ia que estremece no seu íntimo, ligeiramente abalada por esta minha energia de homem poderoso e maduro que, ao rodeá-la, ameaço cercá-la com uma estranha força magnética que desprendo.
— Você sabe o que é que esse homem fez? – pergunto, encarando-a com uma concentração cheia de malícia.

sábado, 7 de maio de 2016

Ficção XVI: A espera (do livro «Pena Máxima», capítulo 5)

O pior de tudo é a espera. Ou antes: a demora que ela contém. Não me custa o passar do tempo em si mesmo, compreendo a necessidade de aguardar a ocasião certa, o sentido de uma ordem na qual cada coisa acontece por sua vez. Porém, esta espera, este prolongamento de uma duração anterior ao que está para ser feito, apenas aumenta a expetativa, desenvolve uma antecipação fantasmagórica e impotente, amplifica o nervosismo ou instala-o onde ele não existe.
Estou aqui parado desde que saí do espaço da sala. Emparedado na estreiteza deste corredor, faço-me desaparecer na escuridão apenas devassada pela luz que vem da porta, o único acesso de entrada. Há pouco, quando a transpus e mergulhei na obscuridade deste corredor, cruzei-me com ela, ou melhor, passei pelo seu vulto imóvel que pareceu nem se aperceber da minha presença. De olhos fechados, estava completamente voltada para dentro, como se nada nem ninguém mais existisse, como se quisesse negar qualquer existência exterior a ela, potencial ameaça para a sua fragilidade. Fragilidade. Repito mentalmente esta palavra: fragilidade. Associo-a à imagem que me ficou dela, de olhos fechados para dentro, no corredor escuro. Preciso desta associação. Daqui a pouco, quando a enfrentar, é fragilidade o que tenho de ver diante de mim, o que tenho de reconhecer nela. É sobre a sua fragilidade que tenho de afirmar a minha força, é contra ela que tenho de investir. Para esmagá-la, liquidá-la. É esse, apenas esse, o objetivo que devo ter em mente. Nada poderá distrair-me, não devo permiti-lo.
Aqui, imobilizado neste corredor escuro, impossibilitado de realizar qualquer movimento que me denuncie no tilintar dos aros desta corrente que se prende às minhas pernas e, juntamente com as algemas que me amarram as mãos, simboliza a prisão desta condenação onde cumpro a expiação da minha maldade, aguardo. Entretenho, nesta escuridão calada, os longos minutos que me separam do regresso à sala onde poderei falar, responder às perguntas dela sob a luz branca e insistente. O pior de tudo é a espera. Ou antes: a demora que ela contém. Esta inatividade forçada que nos sujeita às tentações da imaginação fugitiva.
Não quero fugir. Não quero afastar-me de mim, aqui, do meu corpo amarrado na solidão deste corredor escuro, do meu espírito tolhido pelas cadeias de uma culpa de que não quer libertar-se. Não quero imaginar, não posso ceder à imaginação, esse radar infinito que consegue desenhar as órbitas invisíveis de tudo o que vagueia no espaço insondável da nossa inconsciência. Tenho de concentrar-me na minha realidade, aqui e agora, neste corredor de uma espera exígua e sem luz. Sou o Adolfo e quero estar preso. Sou uma personificação de crueldade anestesiada por algemas, a maldade à solta num corpo amarrado. Sou o Adolfo e quero estar preso. Por causa dela. 

domingo, 1 de maio de 2016

Ficção XV - Chegou o momento

Olho-me ao espelho bem iluminado, que a brancura das paredes apertadas torna mais luzidio. Aprecio a tonalidade clara da pele do meu rosto, que uniformizei cuidadosamente com a aplicação de uma camada muito fina de base baça. Reconheço o brilho expressivo dos meus olhos negros amendoados, acentuados pelo risco que acabei de traçar e indubitavelmente valorizados pela sombra bicolor que me amadurece o olhar sem me mascarar a frescura juvenil. Abano suavemente a cabeça, para apreciar o voltear livre dos cabelos negros, normalmente ondulados, que optei por esticar para que me caiam direitos sobre a base do pescoço, com singeleza e circunspeção. Sinto-me bonita, mas ainda não completa. Falta o retoque nos lábios e depois a roupa. Mais uma vez olho para o estojo de maquilhagem muito bem apetrechado que tenho diante de mim e a que sempre recorro em momentos como este, em que a construção da aparência, muito mais do que a simples montagem de um adorno, é ao mesmo tempo uma afirmação estética e uma opção estratégica decisiva para o sucesso.
Opto por reforçar a cor natural dos lábios, acentuando o seu desenho curvilíneo e conscientemente sedutor. Sorrio diante do espelho. Agrada-me o efeito da minha boca aveludada que se entreabre num convite moderado. Um pouco mais de abertura e a visibilidade dos meus dentes muito brancos e certos torná-la-á irresistível. 
Consulto o relógio de pulso. Pego no frasco de perfume de baunilha e frutos maduros, cuja fragrância envolvente e aveludada aprecio deveras, e vaporizo levemente o pescoço e o peito. Arrumo o estojo de maquilhagem sem pressa, mas não deixo de experimentar um certo atabalhoamento dos gestos, uma dificuldade de executar tudo com precisão. O nervosismo ameaça apoderar-se de mim, à medida que o tempo escorre para o momento inevitável. E sinto frio. Apesar da porta fechada, da pequenez aconchegante do espaço onde me encontro, da intensa luz branca que ricocheteia em todas as paredes brancas e do espelho que me devolve, num reflexo fulgurante, a convincente imagem de mim própria, deixo-me abalar por um arrepio atemorizante, uma espécie de vento de susto, qualquer coisa como uma corrente de ar vinda do íntimo. É isto que eu quero, mas não tenho a certeza do meu desejo de estar aqui, não estou segura do que me preparo para fazer.
Levanto-me, afasto a cadeira onde estive sentada e recuo um passo. Miro-me de corpo inteiro ao espelho. Esfrego uma na outra as mãos frias, prolongo o toque entrelaçado dos dedos macios, coço as palmas brancas com as unhas sem verniz. Depois acaricio os ombros nus, ajusto as alças do soutien cor de pele que me afirma os seios atraentes e proporcionados, contorno a silhueta do meu corpo bem modelado até às ancas. Observando a saia de tailleur preta que envergo, muito clássica na sua absoluta simplicidade, lembro-me da longa hesitação sobre a sua adequação ao momento e de como se defendera a preferência por um conjunto de casaco e calça, sob o argumento de uma maior proteção da minha integridade física. Alegro-me por ter conseguido, não obstante, impor a minha proposta, pois verifico que a saia realça incomparavelmente melhor a minha feminilidade, caindo travada sobre os joelhos e destacando-me o perfeitíssimo desenho das pernas, cobertas por umas finas meias incolores. E, se é certo o maior perigo a que esta indumentária me expõe, a verdade é que esse é um risco que me disponho a correr em nome de uma aposta de tudo ou nada que me parece necessário fazer.
Calço os sapatos de salto médio que erguerão a minha envergadura de um metro e setenta à altura de um confronto suficientemente equilibrado com o prisioneiro diante de quem me apresentarei e que, por ser mais alto, se sentirá numa superioridade dominadora que estou disposta a consentir-lhe. Pelo menos aparentemente. De uma cruzeta suspensa de um varão pende a blusa azul que retiro e visto, abotoando-a na frente com irreprimível frenesim. Hesito entre entalá-la na saia ou deixá-la simplesmente pender sobre ela, de modo subtilmente negligé. Decido-me pela segunda possibilidade, porque se identifica mais comigo e porque serve melhor o objetivo do que vai acontecer.
Miro-me novamente ao espelho, antes de vestir o casaco preto que completa o tailleur. Recordo ainda a discussão sobre a escolha da cor preta, que fará a minha figura diluir-se no espaço da sala, uma vez lá dentro. Lembro-me de que isso foi apontado como uma vantagem, um trunfo – como então foi dito – contra o qual nenhum dos argumentos contrários logrou prevalecer.
Visto e ajusto o casaco, sem o apertar. Consulto novamente o relógio de pulso e sinto-me estremecer de emoção. Esperava este momento, dediquei-me a ele numa preparação simultaneamente paciente e ansiosa. Cheguei aqui discreta e anónima, completamente despojada desta figura modelada e consistente em que acabo de me tornar. Tomo consciência de que esperei até ao último instante possível para me revestir desta imagem que agora o espelho me devolve, num reflexo da metamorfose interior que operei.
Pego na carteira, que ponho ao ombro, e na pasta de mão, onde guardei tudo aquilo de que irei necessitar. A carteira faz conjunto com os sapatos, na simplicidade das suas linhas elegantes, e tem uma alça composta de finos aros metálicos, presos nas extremidades com umas fivelas que reproduzem o desenho das aplicações dos sapatos. Quanto à pasta de mão, tive o cuidado de escolher um exemplar despretensioso, que não evidenciasse linhas exclusivas ou marcas sonantes, que em nada condiriam com a minha condição de praticamente estreante neste tipo de situações.
Olho-me mais uma vez ao espelho. Sou eu mesma, Cândida, a repórter enviada pela redação do jornal para entrevistar o controverso prisioneiro que enviou aquelas estranhas mensagens por carta. Estou pronta, agora. Sei que é suposto que o estivesse já antes, que não deixasse para os derradeiros momentos estes preparativos exteriores em que me demorei. Porém, este modo de proceder faz parte do meu processo de abordagem da situação. É o meu método para conseguir uma maior tranquilidade pelo retardamento da sensação de prontidão: a ocupação do tempo que resulta do atraso e prolongamento dos preparativos inibe a expansão do nervosismo, que se acentua nos instantes de espera passiva. Não foi fácil dar a entender isto, recordo a teimosia com que insisti para, contra todas as regras, retardar ao limite o processo de transformação. A cedência, enfim, não foi um reconhecimento, mas antes uma aposta no valor do efeito de surpresa que conseguirei provocar. Sobre mim própria, principalmente.
Abro a porta e saio para o corredor escuro. Fecho os olhos, respiro fundo, sinto o descompasso do batimento cardíaco, controlo a respiração. Sei o que me espera, mas não tenho a certeza de conseguir lidar com o momento real, no qual circunstâncias inesperadas poderão tornar inútil toda a antecipação que fiz. E, mais uma vez, insinua-se em mim a incerteza quanto à vontade de estar aqui, a insegurança quanto ao que me preparo para fazer.
Oiço passos, ao fundo, embrulhados num bizarro marulho metálico. Mantenho os olhos fechados. Pressiono as pálpebras, quero virar-me toda mais para dentro de mim própria, concentrar as energias num gesto de compressão física que me foque no meu íntimo, que me recorde a coragem de chegar até aqui e me reconcilie com a urgência e o sentido de tudo isto. Sinto que ele passa por mim, mas ignoro. Quero sentir-me só, pois, neste breve instante, eu própria sou a única pessoa que preciso de enfrentar.
Abro finalmente os olhos. Sinto a respiração mais suave, o ritmo cardíaco normalizado. Avanço pelo corredor, em direção à porta da sala. Chegou o momento.

sábado, 23 de abril de 2016

Texto sexagésimo terceiro

Que dirá de mim a mediocridade futura? Que desculpas ou hipocrisias saberá inventar para que me não reconheçam inteiro como sou, humano mais que os homens, divino acima de todas as ideias de deuses?
A vulgaridade em que os homens se confortam há de rastejar-me na lama das dúvidas sobre mim, há de chafurdar na baixeza de suspender-me num ignóbil cadafalso de doutas investigações sobre a minha identidade, sobre o gesto autêntico da mão que segura a pena que traça o inatingível desenho dos meus versos. A banalidade que nada sabe afirmar há de contorcer-se em interrogações sobre a incompreensão do que a transcende. E ignorará teimosamente que o transcendente não pede compreensão, só deslumbramento.
Que dirá de mim a mediocridade futura? Que necessidade terá de dizer seja o que for, quando tudo o que peço aos homens é que me leiam na língua que fabriquei e nas outras todas a que hão de reduzir-me, que me escutem nas vozes treinadas de todos os que aprenderão a viajar ao mais fundo de si para me dizerem e nas vozes menos treinadas de todos os outros que me dirão toscamente, na simplicidade grandiosa de entenderem que também sou para eles? Sobretudo para eles.
Que dirá de mim a mediocridade futura? Que me importa isso, afinal? É por causa dela que eu sou. Porque não a sou. Para resgatar o seu corpo flácido embrulhado no abrigo de mesquinhez e vileza que construiu por não saber mais sobre si e por ignorar que não sabe. Para semear em tiradas e versos a esperança de que, um dia, as suas mãos inertes ganhem coragem para abrir o livro da vida e libertar a grandeza sepultada nos recônditos do corpo flácido embrulhado.
Então, a mediocridade futura permanecerá. E continuará a dizer de mim, a condenar-me na baixeza das dúvidas argumentadas. Porém, já não poderá ignorar o deslumbramento de saber que a transcendência que ela teme, porque a desnuda, existe no íntimo do corpo flácido. E revelou-se um dia na História. E teve um nome. O meu.
William.

domingo, 17 de abril de 2016

Texto sexagésimo segundo

Não consigo dizer se fosse eu. Talvez não conseguisse ser eu se fosse eu. Fugiria num repente, mochila às costas cheia de nada, ou vazia de tudo. Ou cheia de tudo o que é nada no vazio das palavras recostadas no conforto do que nunca experimentámos.
Não consigo pensar se fosse eu. Decerto não conseguiria ser eu se fosse eu. Fugiria num repente, soltaria o meu corpo na vertigem da sobrevivência, para salvar o que restasse da alma que ficaria para trás, inevitavelmente para trás no silêncio das coisas, no ruído das gentes, nas coisas das histórias das gentes, nas gentes dos lugares das coisas. Na vida inteira desabada que não cabe em nenhuma mochila às costas cheia de nada, ou vazia de tudo.
Não consigo imaginar se fosse eu. Já não seria eu se fosse eu. Fugiria num repente, desgarrado de mim, dilacerado e pulverizado, abandonado ao absurdo trânsito de resgate porque mais nada, porque o caminho entre os sonhos construídos que se deixam, desfeitos, e as fantasias desejadas que se buscam, quiméricas, é inconsistente e doloroso como um vácuo. Destruidor, mas é o único caminho. Nisso consiste o impensável horror: lançar-se na fornalha porque é preferível caminhar sobre brasas do que deixar-se submergir pela lava incandescente. E desejar as brasas e correr para elas, como se fosse diferente. Que importa o que nos enche a mochila, ou o que se diz sobre isso no vazio das palavras recostadas no conforto do que nunca imaginámos?
Nem consigo ser eu a pensar se fosse eu. Que seria de mim se fosse eu?...

domingo, 10 de abril de 2016

Texto sexagésimo primeiro

Fahrenheit 451, de Ray Bradbury: o livro que todo o escritor tem de ler. Porque é sobre os livros e o seu poder e a sua necessidade. Sobre o poder da necessidade dos livros. E porque é sobre os homens.
Fahrenheit 451: a temperatura de combustão do papel. O furor incendiário revela o modo cobarde como os homens exercem violência prepotente (terrorista?) contra tudo o que os assusta ou ameaça. Ou suplanta. Queimar os livros é reconhecer a própria pequenez perante o poder criador da Palavra. Memorizar os livros queimados é tornar-se portador de uma grandeza maior, é elevar-se à categoria de re-criador por meio da Palavra.
Fahrenheit 451: o valor da Palavra na escrita das palavras. E na memória delas.
Eis um excerto da parte final deste livro magnífico, do discurso de Granger, o líder dos «loucos» memorizadores de livros:

«Não és importante. Não és nada. Um dia o fardo que transportamos talvez ajude alguém. Mas, mesmo quando tivemos os livros na mão, há muitos anos, não nos servimos daquilo que tirámos deles. Desatámos a insultar os mortos. Desatámos a cuspir nas campas dos desgraçados que morreram antes de nós. Vamos encontrar muitas pessoas sós na próxima semana e no próximo mês e no próximo ano. E, quando nos perguntarem o que estamos a fazer, podemos dizer: “Estamos a recordar.” É tudo o que ganharemos a longo prazo. E um dia recordar-nos-emos de tantas coisas que construiremos a maior escavadora a vapor da História e abriremos a maior sepultura de todos os tempos e empurraremos lá para dentro a guerra e tapá-la-emos. Venham, em primeiro lugar construiremos uma fábrica de espelhos e produziremos apenas espelhos durante o próximo ano e olharemos longamente para eles.»


domingo, 3 de abril de 2016

Conversando... sobre «crowdfunding»

Não é um peditório, nem sequer uma recolha de donativos. O crowdfunding é um sistema de financiamento colaborativo, assente na ideia de que a escassez de recursos individual pode transformar-se numa riqueza coletiva que, por sua vez, se traduz em benefícios particulares. Porque qualquer cidadão pode apoiar qualquer projeto de qualquer âmbito com qualquer quantia, colaborando na sua realização e colhendo sempre o retorno duma recompensa concreta.
Em certo sentido, o crowdfunding constitui uma alternativa aos modelos puramente capitalistas que ditam que só quem dispõe de capacidade financeira à partida pode empreender projetos. Porém, também não é uma espécie de coletivismo em que os participantes entreguem o seu património particular num contributo para um bem geral indefinido. Prefiro designá-lo como uma «comunidade de troca»: ao interessar-se por um projeto, cada indivíduo participa com o valor que quer ou pode a fim de viabilizar a sua concretização. Ao mesmo tempo, receberá o benefício de uma recompensa prevista. É por isso que não faz um donativo, mas realiza um investimento. Não «perde» dinheiro, mas adquire antecipadamente um bem ou serviço que lhe interessa, tornando-se corresponsável pela realização de uma iniciativa que considera válida e útil. Dir-se-á que, em contrapartida de se comprometer com um projeto, «ganha» em duas frentes: na recompensa que recebe e na satisfação de ser participante num empreendimento. É, pois, uma troca. Comunitária, porque envolve muitas pessoas, conhecidas entre si ou não, unidas pela causa comum que valorizam.
Esta noção da troca, que rompe os limites de uma certa atual cultura individualista («não tenho nada a ver com o que os outros fazem») e desconfiada («quero é ver o artigo pronto à minha frente antes de o comprar»), não é nova. Existiu em todos os tempos da história humana, designadamente na Europa pré-industrial, sob a forma das variadas redes de solidariedade que as populações criavam para sobreviverem através da ajuda mútua. Limitadas pela imobilidade dos espaços fechados do seu mundo e constrangidas pela submissão ao arbítrio de poderes públicos ou privados, cultivavam o espírito comunitário de partilhar o que tinham para ter acesso ao que precisavam e/ou desejavam.
A revolução industrial, ao separar capital e trabalho naquilo que se designou por modo de produção capitalista, tendeu a restringir a iniciativa social, tornando-a específica de quem possuía os recursos económicos para ser empreendedor e remetendo quem os não possuía à condição de simples obreiro a troco de um salário. Sabemos como isto dividiu e opôs as populações, contrariando o dinamismo da troca. A qual, não obstante, nunca desapareceu, tendo porventura permanecido, muitas vezes, como a garantia de sobrevivência dos mais pobres.
Hoje, a globalização alarga os horizontes de comunidade e, assim, relança a urgência da troca. E o seu alcance. E o seu poder. Na campanha de crowdfunding para publicação do meu livro Pena Máxima, houve apoios vindos de diferentes pontos do país, colaborações de pessoas que não conheço pessoalmente e participações de amigos em viagem ou residentes no estrangeiro. Todos terão o seu nome inscrito no livro (primeira e mais imediata recompensa individual). Todos receberão as restantes recompensas que lhes correspondem. E, pelo seu contributo, todos são corresponsáveis, comigo e com a Editora Livros de Ontem, no empreendimento de acrescentar a literatura portuguesa com mais uma obra.
Todos ganhamos. É isto o crowdfunding. Uma comunidade de troca e benefício. Em que, todos juntos, somos mais humanidade.

domingo, 27 de março de 2016

Páscoa

Os sermões pronunciados pelo Padre António Vieira foram modelos de pregação que decerto deliciaram os apreciadores que os escutaram. Conhecemo-los graças ao aturado esforço do próprio pregador, que os passou a escrito, no que fez deles tesouros de parenética. Hoje, ao lê-los, degustamo-los como pérolas de literatura, requintes da delicada prosa barroca em que Vieira exercitou a Língua Portuguesa ao mais elevado nível.
No início de mais um Tempo Pascal, não resisto a partilhar um excerto do Sermão da Ressurreição de Cristo, pregado na igreja matriz de Belém do Pará, em 1658 (segundo a edição dirigida por José Eduardo Franco e Pedro Calafate, publicada pelo Círculo de Leitores em 2013). Porque, além do mais, ensina claramente no que consiste – e para que serve – a religião:

«Cuidam alguns que fazem grande fineza, e grande serviço a Deus em O servirem. Deus não tem necessidade de nada, nem de ninguém: Deus meus es tu, quoniam honorum meorum non eges [Sl 15, 2]; não tem necessidade de que nós O sirvamos: nós é que temos necessidade de O servir a Ele. São Francisco de Borja, recebendo em seu serviço os criados de casa de seu pai defunto, e conservando juntamente os que tinha da sua, respondeu aos que lhe diziam que eram supérfluos: Estos queden; porque tengo necessidad dellos; y essotros queden también; porque tenen necessidad de mi. Deste segundo género é que são todos os que servimos a Deus. Não se serve Deus de nós, porque tenha necessidade de nós; senão porque nós temos necessidade Dele. Ouçamos ao mesmo Deus: Nunquid manducabo carnes taurorum, aut sanguinem hircorum potabo? [Sl 49, 13]. “Cuidais que me fazeis grande serviço em me oferecer grandes sacrifícios? Porventura hei Eu de comer a carne dos vossos bezerros, ou beber o sangue vossos cordeiros? Da mesma maneira não tenho necessidade do vosso jejum, porque Eu não como o que deixais de comer; nem muito menos tenho necessidade da vossa reza, porque tenho Anjos, que com melhores vozes continuamente me louvam. Finalmente, não hei mister que deis esmola aos pobres, porque Eu os sustentarei com a mesma facilidade, com que sustento as aves do ar, e os bichinhos da terra; mas vós sois os que tendes necessidade de dar esmola, de rezar, de jejuar, e de me fazer sacrifícios”. Assim que havemos de buscar, e servir, e amar a Deus com pressuposto que quando O buscamos a Ele, nos buscamos, e nos achamos a nós; que, quando O servimos, nos servimos; quando O amamos, nos amamos; e quando gastamos com Ele, gastamos, e despendemos connosco. Bem se viu nas Marias. Compraram aromas: e quem se ungiu com eles? Elas, e não Cristo; porque tudo lhes ficou em casa. E o mesmo fora se ungiram ao Senhor, como lhe aconteceu a uma delas, a Madalena, que quando ungiu ao Senhor: Capillis capitis sui tergebat [Lc 7, 38], dava com as mãos, e recebia outra vez com os cabelos; senão que o recebia melhorado, como tocado em tão soberanas relíquias.»

domingo, 20 de março de 2016

Texto sexagésimo

Escrever. Resolver uma necessidade interior. Tornar visível um segredo. Ou antes, um mistério. Mais que um mistério, uma inquietude. Mais que uma inquietude, um anseio. Mais que um anseio, um ai.
Escrever. Resolver uma necessidade interior. Soltar uma voz, dar forma de palavras a um grito. Um rugido sufocado, os sonhos todos cá de dentro reprimidos na gaguez lacrimosa desta impotência humana de dizê-los. Pequena demais, a natureza humana. Cala as vozes mais íntimas em nome de princípios de realidade inventados, ao mesmo tempo que fecha os olhos ao mundo numa redução fenomenológica que a encerra na jaula dum quotidiano urgente.
Escrever. Resolver uma necessidade interior. Deixar-me ser, viver o outro que o habita, conceder-me a liberdade que a si próprio recusa. Assumir-me, permitir-me ser-lhe voz na forma de palavras e revelar o segredo, desvelar o mistério, aliviar a inquietude, partilhar o anseio. Pelo menos, em parte: soltar um ai.
Escrever. Soltar um ai. Abrir uma fenda na muralha e respirar. Ser eu na impotência humana dele. Resolver uma necessidade interior.

domingo, 13 de março de 2016

Texto quinquagésimo nono

Escrito há vinte e dois anos. Letra de uma canção incluída numa peça de teatro musical, ajudava a desenhar – com evidente ingenuidade, reconheço-o – determinada personagem atrevida, licenciosa, provocadora e subversiva.
O resultado bem conseguido, na época, deveu-se à encenação e à interpretação. Agora, revisitando o texto, aprecio-lhe principalmente alguma riqueza no jogo das palavras. E um certo tom de interpelação…

Quero provar o sabor a sal da vida
Mesmo que me digam que ando mal na vida
Quero morder tudo o que o mundo tem de seu
Se todos o fazem, porque não eu?

Quero sentir-me no alto mar da vida
Mesmo que me acusem de só gozar a vida
Quero saltar da pasmaceira que já deu
Se todos o fazem, porque não eu?

Porque não eu para me perder
Na selva de oiro e de paixão
Onde os desertos não nos podem dar a mão?
Porque não eu para me entregar
Sem ter remorso ou compaixão
Já que os decretos só nos sabem dizer não?

Quero sentar-me no carrossel da vida
E deliciar-me com todo o mel da vida
Quero curtir, porque o futuro já morreu
Se todos o fazem, porque não eu?