quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Happy New Year!

Era o fim dos anos setenta.

Éramos todos sonhadores, erguíamos os punhos com diferentes intenções por ideais valiosos e vários. E envergonhávamo-nos um pouco de assumir que ouvíamos esta música.

Não obstante, na «vulgaridade» do seu pseudo-sentimentalismo comercial, ela dizia um pouco dos nossos sonhos de harmonia e paz para o mundo, falava docemente dos valiosos e vários ideais amargos pelos quais erguíamos os punhos com diferentes intenções. Por isso, talvez por isso, a ouvíamos.

Era o final dos anos setenta, foi um pouco o final dos nossos sonhos, ou melhor, dos nossos ideais (será o mesmo?...). Hoje, já pouco erguemos os punhos... E por isso, talvez por isso, já pouco nos envergonhamos de dizer que ouvíamos esta música.

Ela aqui está. Conserva a «vulgaridade» do seu pseudo-sentimentalismo comercial. Para que nós acordemos os nossos sonhos. E voltemos a erguer os punhos com diferentes intenções por ideais valiosos e vários.

Feliz Ano Novo!

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

A paz por um canudo

Há 101 anos, no dia de Natal de 1914, no cenário da Primeira Guerra Mundial, na terra de ninguém entre trincheiras da Frente Ocidental, soldados ingleses e alemães encontraram-se, trocaram apertos de mão e bebidas, tiraram fotografias e até jogaram futebol. Conta-se como tendo sido um acontecimento isolado e localizado, um episódio fugaz e circunscrito, num intervalo de batalhas que durou apenas o tempo da distração das chefias. E logo a carnificina recomeçou: os homens treinados para se matarem não podem ceder à fraqueza de afetos com rosto, nem dar-se ao luxo de se (re)verem noutros homens, ou de verem outros homens em si próprios.
Porém, os historiadores (essa espécie subversiva que desenterra memórias e constrói narrativas a partir delas) falam de mais de vinte casos simultâneos, ao longo de mais de quarenta quilómetros da linha de trincheiras. Terá havido ocorrências semelhantes noutros lugares daquela guerra a que muitos já não atribuíam sentido? Alguns escritores, dessa espécie indomável que inventa narrativas para lá das memórias, consideram tal hipótese mais do que provável: os homens criados para se amarem não podem ceder à fraqueza de ódios anónimos, nem dar-se ao luxo de se cegarem diante de outros homens, ou de verem diante de si outros homens cegos de si mesmos.
No assustado mundo de hoje, que foge para as guerras complexas por medo da simplicidade da paz, esta história do Natal de há um século é mais que uma memória. É uma provocação. Evoco-a aqui, através do videoclip de uma canção que, segundo parece, nunca terá sido cantada ao vivo (sabe-se lá porquê…!).
É uma metáfora do nosso mundo: a paz por um canudo. Mas vê-se. Existe.
Feliz Natal!

domingo, 13 de dezembro de 2015

Décima quarta alegoria

e se de repente
escorridas
as armas
cansadas do riste
pendidos
os braços
líquidos de chão
longe
o olhar
limpo num sonho
teimoso de não querer
acordar
alegre da tristeza
esquecida

e se de repente
os braços de novo
erguidos em afeto
agora
as armas de novo
firmes como pão
agora

e se de repente
sepultada
a luta ressuscitada
a seiva luz
na treva sombra
no clarão harmonia
no mundo
todo

e se de repente
sorriso
perdão
compaixão
amor

e se de repente
deus
o homem
feliz

sábado, 5 de dezembro de 2015

«Macbeth», pelo Teatro Experimental de Cascais

O espaço vazio, o chão negro das rivalidades humanas, a ambição insensível e dura a erguer-se dele como menires de ferro ancestrais, memórias de lutas passadas cravadas como pilares. A luz errando como desejos perseguidos, descobrindo virtudes e ocultando perversidades (ou o contrário). E o som: ecos da consciência como ondas gordurosas, o remorso no sobressalto de trovões. Sobre todo este manto, as palavras grandiosas e os atores que as defendem. E mais nada.
Há quem diga que Shakespeare deve ser encenado assim. Sem o abuso de ornamentos, sem artifícios nem rede. Na corajosa transparência de um texto que já contém tudo e onde as opções cénicas são meros sublinhados de uma leitura que se partilha. É assim o Macbeth do TEC.
A tradução de Miguel Graça é cuidadosa, não rouba ao texto senão o inevitável (e digo-o, tendo assistido, há menos de três meses, a uma representação na língua original em Stratford-upon-Avon). De resto, Shakespeare é demasiado universal, grita verdades que estão para lá das línguas e não sufocam no labirinto delas.
A encenação de Carlos Avilez é extraordinária na grandeza da sua simplicidade: ousa submeter-se ao texto, vira-se inteiramente para ele, numa espécie de vénia sábia que se rende ao fluxo das palavras sem nunca renunciar a conduzir o ritmo do drama. Sem o abuso de ornamentos, ou talvez no abuso da ausência deles.
A representação dos atores é, neste contexto, coragem pura: sem artifícios nem rede, soltos na arena e inermes até nas espadas que empunham, lutam com um texto esmagador ao qual se entregam no sacrifício redentor de vivificá-lo. E a nós.
Há quem diga que o teatro é isto: um espaço vazio, um texto cheio. E atores que se esvaziam no texto preenchendo o espaço, preenchendo-se no espaço. E a nós.
É por isso que Shakespeare deve ser encenado assim. Porque o teatro é isto. Porque Macbeth.

No Teatro Municipal Mirita Casimiro. Até 27 de dezembro.
https://www.facebook.com/events/189306811403506/204368786563975/

domingo, 29 de novembro de 2015

Ficção XIV - Abrir a porta

Abriu a porta do quarto como quem retira da gaveta o álbum das recordações mais antigas. Num olhar profundo como um suspiro, varreu a camuflagem poeirenta do tempo decorrido, o exercício teimoso de afastamento, o esforço contra a corrente de não voltar ali. E entrou.
No passo meio arrastado dos seus setenta e dois anos, Maria de Lurdes ocupou energicamente o espaço vazio daquela divisão da casa onde não entrava havia treze anos. Pudessem as paredes opinar e considerá-la-iam igual, a mesma Maria de Lurdes de sempre, maciça de corpo, robusta de espírito, carregada nas feições e nos humores. Nada mudara nela. Ou antes – mas isso as paredes do quarto não saberiam avaliar – tudo o que se alterara no seu modo de ser e agir voltou atrás como o encolhimento de um elástico, no simples movimento de transposição da porta aberta, gesto de retirar da gaveta o álbum de recordações. Um simples avanço no espaço bastou para romper a barreira do tempo. Um olhar profundo como um suspiro, um leve passo em frente, como o voltear da capa forrada do álbum. E Maria de Lurdes reabsorveu por inteiro a alma de que se separara já não se lembrava quando. Talvez no dia em que cerrara a porta e a aprisionara naquele quarto fechado. Ou talvez antes disso, no dia em que aprisionara o quarto na sua alma fechada a cadeado.
Aquele quarto era uma parte da sua vida, era a fatia de existência que lhe valia a vida toda. Maria de Lurdes poisou o olhar na cama de corpo e meio: cabeceira contra a parede, o estrado avançando numa conquista do espaço, os pés fincados no soalho como marcos. Lembrou-se da encomenda na loja de móveis, do registo das medidas e da escolha do arredondado sóbrio dos espaldares; do pagamento adiantado depois de regateada discussão, da irritação causada pela entrega tardia e do cheiro a suor dos trabalhadores encarregados da montagem, que valera uma nova deslocação ao estabelecimento, para exprimir o descontentamento:
— Ó sr. Asdrúbal, diga lá aos seus empregados para tomarem banho e não serem porcalhões, que agora tenho que deixar a casa a arejar durante três dias!... 
Lembrou-se também da outra cama, mais pequena, que ocupara aquele espaço anteriormente, da tímida cama de grades que a precedera e até do berço que existira primeiro, mas numa casa anterior, não ali. E sorriu. Aquele era o quarto do seu filho. José António.

domingo, 22 de novembro de 2015

Texto quinquagésimo quarto

Dói demais esta distância de olhar-te e não te reconhecer quem foste. Dilacera-me este muro de te ver olhares-me sem saberes já lembrar quem sou. E mergulho impotente neste abismo de lágrimas raivosas, escorridas na pele resignada na aceleração do choro.
Fecho os olhos embaciados para te rever antiga, no sorriso jovem com que me iluminavas a infância e dizias o meu nome entre as carícias e repreensões com que me educaste. Foram tempos de ternura e firmeza, dedo esticado e abraço quente, em que me fizeste aquela que sou. Alegrámo-nos juntas nas confidências que sofremos a meias, unidas no riso e solidárias no pranto. Foste minha mãe acima de tudo, fui tua filha mais que todos. Cresci nesta inexorável aproximação a ti.
Agora estamos frente a frente e não somos. Apagaste-te num muro invisível que se ergueu sem tu esperares, que te emparedou sem eu querer. Não há entrada para ti nessa prisão do pensamento ausente, não há saída para mim deste labirinto das emoções visíveis. Choro assim, impotente, este inexorável afastamento de ti.
Dói demais esta distância de olhar-te e não te reconhecer quem foste. Dilacera-me este muro de te ver olhares-me sem saberes já lembrar quem sou. Porém, estamos aqui, porque existimos. És a minha mãe mais que nada. Sou tua filha apesar de ninguém.

domingo, 15 de novembro de 2015

Texto quinquagésimo terceiro

Paris em novembro.
Bruta demais, esta violência! Injusta até à crueldade, desumana até ao desespero. Vergo-me perante a insensatez, torço-me num ponto de interrogação impotente. Quereria ver reticências de esperança que não consigo: porventura estendem-se para a frente, mas a cabeça curvada faz-me olhar para trás, mergulhar nos recônditos da humanidade, perscrutar as razões que o não são. Insensatez.
Paris em novembro.
Porque acredito no Homem, cerro os ouvidos a gritos de vingança, estremeço perante promessas de retaliação, fujo de exorcismos de raiva. Porque tudo isso eu sinto, também. Sem querer, porque acredito no Homem, nos homens, no homem que sou e nos outros. E no Outro. Não é possível que sejamos só isto, este Paris em novembro. Tem de haver algo mais que nos fez atravessar os séculos, chegar aonde estamos, fazer-nos o que somos. O Homem.
Paris em novembro.
Procuro um perdão que exista. Peço-o. Não para as vítimas: já o obtiveram pelo martírio. Mas para os próximos delas: merecem-no demais para ousarem precisar dele. E para os carrascos: precisam demasiado dele para se dignarem merecê-lo. Procuro um perdão que exista e nos salve desta loucura de nós mesmos. Talvez o Outro…
Paris em novembro.
Bruta demais, esta violência! Procuro um perdão que exista, que suplante a insensatez. Que será do Homem sem ele?...

domingo, 25 de outubro de 2015

Décima terceira alegoria

Não se apaga
este invisível que arde por dentro
Labareda nuvem sopro corpo
que preenche.

Não se cala
este silêncio que jorra no íntimo
Grito pausa vertigem espera
que perdura.

Não se trava
este infinito breve tudo
Sonho perda conforto lágrima
que é.

Eu em ti
Tu em mim
Nós nos outros
Os outros no Outro
O Outro em mim.

Presença.
Amor.

domingo, 18 de outubro de 2015

A pulsação da fé

Há um cheiro de corpo nesta música.

Há um toque de terra neste corpo.

Há um sabor de vida nesta terra.

Há uma visão de eternidade nesta vida.

E tudo isto ressoa na transcendência destas imagens, montra de uma essência que aos sentidos se revela, mas que só noutra dimensão se apreende. E noutra ainda se experimenta.

A pulsação da fé.

sábado, 10 de outubro de 2015

Texto quinquagésimo segundo

Franqueza: a escrita limpa, palavras certeiras inscritas no ritmo de uma pontuação musical, perfeita. Franqueza: representações honestas, despretensiosas na busca de algo mais longe, artístico. Franqueza: direção transparente, libertadora de fragilidades e atenta na restrição dos detalhes, cuidados.
Franqueza. E ironia, acima de tudo. Simplicidade na maneira de dizer o que há de mais complexo: o lado negro do ser humano. Ironia: inspiração amadora gritando a premeditação, o trabalho continuado dizendo os impulsos espontâneos. Ironia: o gosto de rir com vontade dos desgostos alheios, o cómico dos dramas da vida dos outros que seriam tragédias à nossa porta.
Franqueza. Ironia. E vontade de rir. Tudo tão bem feito (e não foi por mim!...).
Que inveja! Apetece-me matar alguém…

domingo, 4 de outubro de 2015

Ficção XIII - Memória de nunca

Como dizer-te a memória do que nunca aconteceu?... O aceno vago de te ver passar no outro lado da rua leva no gesto o desejo voluptuoso de uma carícia aveludada que não. O beijo assético na face de te encontrar por acaso contém a ânsia indizível do abraço de sentir o teu corpo fresco de primavera, quente do perfume de ti que nunca. A conversa circunstancial à mesa do café arrasta por dentro a vontade sem cura de uma intimidade subterrânea insaciável, de corpo e alma que jamais.
Como dizer-te a memória do que nunca aconteceu?... Conheço-te e nunca estive contigo. Coincidimos numa existência que nos martiriza nesta partilha de espaço e tempo em que, presentes um ao outro, nunca poderemos pertencer-nos. Porque há em ti uma juventude de sonhos solteiros que zarpam para um mar alto distante da minha velhice celibatária ancorada num porto de cobardias recalcadas.
Como dizer-te a memória do que nunca aconteceu?... Teríamos podido ser felizes se, no jogo da vida, a distribuição das cartas nos favorecesse com trunfos simultâneos. Mas agora já não e depois ainda jamais. Estou contigo e não poderei conhecer-te, porque a tua juventude de sonhos solteiros é o avesso da minha velhice celibatária. Resta-nos, pois, este olhar com que nos contemplamos de costas voltadas, este abismo de gerações em que vemos por dentro das nossas existências separadas a vida comum de que somos feitos.
Como dizer-te a memória do que nunca aconteceu?... És a aventura do meu medo, eu sou a imobilidade do teu impulso. Cascata límpida do meu lodo, amarga esclerose do teu florir. E assim, neste inverso de sermos, lembro-me em ti de tudo o que até agora, lembro-te em mim de tudo o que a partir daqui. Tu trazes-me à memória tudo o que nunca. Mas… como dizer-te?...

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Texto quinquagésimo primeiro

Ver-te adulto no espaço vazio é o prolongamento natural de ter-te recém-nascido nos meus braços cheios. Estremece-me a alma na contemplação desta libertação do teu talento maduro que me envolve no aconchego com que te prendo às noites de menino. Nos sentimentos de alegria e dor que agora interpretas na distância de palavras de outra língua está o olhar sonhador de há anos, quando, bem próximo, declaraste sem palavras que ias partir e ainda não sabias que irias partir.
Ver-te adulto no espaço vazio é o prolongamento natural de ter-te recém-nascido nos meus braços cheios. Na segura eloquência da energia que irradias vejo desvendar-se o mistério que contemplo no silêncio custódio de proteger-te a infância frágil. E orgulho-me de comover-me por sentir que é a tua força que me protege da fragilidade de envelhecer e desistir.
O tempo corre, a vida é inteira. Ligamo-nos hoje pelo ontem que aqui nos trouxe, soltamo-nos no amanhã que somos desde sempre. O tempo corre, a vida é inteira. Ver-te adulto no espaço vazio é o prolongamento natural de ter-te recém-nascido nos meus braços cheios. Somos o que fomos, estamos no que somos. E iremos para onde. 

domingo, 13 de setembro de 2015

Conversando... sobre Aquilino Ribeiro

Aquilino Ribeiro.
Nasceu em 13 de setembro de 1885. É um dos nomes maiores da literatura portuguesa, embora (que eu saiba!...) nenhum currículo escolar o mencione. Trabalhou as letras como uma lavoura artesanal: semeando imagens, enxertando regionalismos, podando a sintaxe e colhendo inovações semânticas. Elevou o elemento rústico da língua portuguesa a um estatuto de obra de arte. E disse-nos como ninguém.
Posso afirmar que a minha escrita cresceu no deslumbramento da sua, a consciência da minha pequenez formou-se na contemplação da sua grandeza.
Em jeito de homenagem, deixo aqui a primeira citação que me lembrei de procurar (terá sido a primeira leitura que fiz dele?...): os parágrafos iniciais da novela O Malhadinhas. Para ler e saborear (e admirar a atualidade).

Quando comecei a pôr vulto no mundo, meus fidalgos, era a porca da vida outra droga. Todas as semanas contavam dias de guarda e, por cada dia de guarda, armava-se o saricoté nos terreiros. Não andaria Nosso Senhor de terra em terra – eu cá nunca me avistei com ele – mas a verdade é que a neve vinha com os Santos e as cerejas quando largam do ovo os perdigotos. Bebia-se o briol por canadões de pau até que bonda. Um homem mesmo com os dias cheios tinha pena de morrer.
Não tenho cataratas nos olhos, ainda que me hajam rodado sobre o cadáver quase dois carros de anos, mas os dias de hoje não os conheço. Ponho-me a cismar e não os conheço. E, quanto mais cismo, mais dou razão ao Miguelão da Cabeça da Ponte, que falava como livro aberto, o grande bruxo. Muitas vezes lhe ouvi dizer quando estava de boa lua, o que nem sempre assucedia:
─ Tempos virão em que o governarão as terras vãs e os filhos das barregãs.

domingo, 6 de setembro de 2015

Texto quinquagésimo

Porque não podemos fechar os olhos: as imagens acendem-se-nos na mente, retratos alucinantes e invasivos como labaredas. Porque não basta cerrar os ouvidos: o grito ecoa no íntimo, pulsações sonoras e retumbantes como explosões.
Porque somos nós, uma parte de nós que é o todo também, esta humanidade sonhadora e decadente, compassiva e perversa, voluntariosa e inerte. Somos nós de ambos os lados, estamos simultaneamente na perseguição e na fuga, no acolhimento e na rejeição, na angústia e no cinismo. Somos mão estendida e punho fechado, braço erguido ao alto e arma apontada, sorriso sereno, lágrima compungida e cuspidela de ódio. Somos nós de ambos os lados, somos nós de todos os lados e não podemos assistir sem nos dilacerarmos por dentro neste misto de solidariedade e culpa, acusação e remorso. Vida e morte.
Não somos «migrantes», essa designação anódina que nos retira uma identidade de origem sem nos conceder o reconhecimento de um destino. Seremos refugiados, porque deixámos a cratera de tudo o que nos dizia em busca de uma planície onde novamente possamos dizer-nos, fugimos da cova que nos soterrava já configurados com o horizonte que nos liberte. Não estamos perdidos, conhecemos o inferno de que queremos escapar, sabemos o rumo do paraíso que nos prometemos. E não aceitamos que nos ignorem num purgatório de encolher de ombros, que nos dispam a pele humana das nossas emoções e crenças, que nos descarnem em meros tópicos de análise política inanimada. Pedimos o refúgio a que temos direito, exigimos a salvação que suplicamos. Porque somos nós.
Somos nós e estamos vivos, mesmo naqueles que morrem. E morremos um pouco, mesmo naqueles que sobrevivem.
Somos nós, de ambos os lados. De todos os lados. Somos nós. Somos nós…

domingo, 30 de agosto de 2015

Texto quadragésimo nono

Não são muitas as recordações que ele conserva da escola primária. Aqueles anos decorreram com a fluidez insensível de uma realidade estática, uma espécie de presente compacto que não se sente avançar, qualquer coisa como uma eternidade confortável. Foi um tempo em que ele não se preocupou com o que ficava para trás ou com o que poderia estar para vir. Se permanecesse para sempre criança, coisa sobre a qual nunca se interrogou, o externato onde frequentou a escola primária, situado a meio da avenida que partia da igreja onde se perdia do mundo e desembocava na mata onde se reencontrava consigo seria um bom lugar para ser. E nada mais.
Mais tarde ele consideraria aquela fatia de passado como uma das duas fases da sua vida em que valeria a pena o tempo ter parado. Mas isso foi quando já tinham nascido as interrogações, as preferências e as amarguras. Antes tratava-se apenas do presente inquestionável que havia e é por isso que não são muitas as recordações que ele conserva. O armazenamento das lembranças é uma operação que se desenvolve na proporção direta do receio da perda e, então, nada estava perdido. Tudo era, simplesmente.

domingo, 23 de agosto de 2015

Texto quadragésimo oitavo

A casa.
Olhou em volta e reconheceu-se em tudo o que via. Porque toda a casa gritava a presença dos seus ascendentes. Era o seu bisavô nas traves mestras de madeira centenária; era o seu avô na marcenaria apurada de todos os móveis; era o seu tio na negligência dos cinzeiros espalhados por toda a parte, mas também na minuciosa catalogação das chaves de cada um dos armários e gavetas; e era, sobretudo, o seu pai no desvelo cuidadoso da preservação daquele mundo, na esquadria funcional da organização do espaço, na longínqua visão de futuro da conservação do passado. E era também, claro, a sua mãe na ternura bizarra do amor-ódio com que marcara impressões digitais por toda a parte.
A casa de família.
Olhou em volta e reconheceu-se em tudo o que via. Porque toda a casa desembocava nele, havia uma história dele gravada naquilo tudo. E, mascarada embora pelo moderno reboco das empenas, coberta pela impecável polidez das telhas recentes, vivia ali uma alma que o habitava.
A casa de família na aldeia.
Olhou em volta e reconheceu-se em tudo o que via. E percebeu que não podia desfazer-se de si mesmo. E reaprendeu o valor da História.

sábado, 15 de agosto de 2015

Texto quadragésimo sétimo

Férias na província. Um mergulho na natureza, um cheiro de terra quente e seca, uma respiração essencial e pura. Um afastamento, um jejum tecnológico com sabor a conversão, um olhar expandido às estrelas em grito de liberdade.
Férias na província. Um rústico aconchego caseiro, uma precariedade de tábuas, a exiguidade apetitosa. E um sufoco de brasas, iguarias crestadas sobre a grelha numa simplicidade primitiva. Odor a lenha, sabor a vida.
Férias na província. Um encontro com o ancestral, um espelho de perenidade que me mostra frágil e transitório. Uma noção de eterno retorno, um vislumbre de Idade de Ouro, qualquer coisa de genesíaco numa quietude de paraíso perdido.
Férias na província. Um folhear de passado. Eu num cenário exterior a mim. Identidade na diferença. Reencontro. 

domingo, 26 de julho de 2015

Texto quadragésimo sexto

De repente, a recordação. O retorno a um cálido passado, a uma infância embalada na simplicidade e emparedada no rigor. A voz do meu pai recitando um poema francês que aprendera na escola, talvez na infância dele que transportava então para a minha, tal como a memória de adulto agora me conduz a esse momento e, pela memória adulta dele, me projeta num tempo anterior. As memórias, e as pessoas que elas contêm, fazem-nos viajar para longe, rompem as fronteiras da nossa existência. As pessoas, e as memórias que elas contêm, dão-nos outra dimensão. Imortalidade.
De repente, a recordação. A voz do meu pai recitando um poema francês, imortal como a lembrança dele, poderoso nas palavras e no seu significado: a humildade contra a soberba, o confronto e a resistência. Sobrevivência do mais fraco, paradoxo da natureza. Imortalidade.
É um poema de La Fontaine, genial como quase todos: beleza das palavras, riqueza das imagens, grandeza das ideias. Recupero-o aqui:

Le Chêne et le Roseau
Le Chêne un jour dit au Roseau:
“Vous avez bien sujet d’accuser la Nature;
Un Roitelet pour vous est un pesant fardeau.
Le moindre vent, qui d’aventure
Fait rider la face de l’eau,
Vous oblige à baisser la tête:
Cependant que mon front, au Caucase pareil,
Non content d’arrêter les rayons du soleil,
Brave l’effort de la tempête.
Tout vous est Aquilon, tout me semble Zéphyr.
Encor si vous naissiez à l’abri du feuillage
Dont je couvre le voisinage,
Vous n’auriez pas tant à souffrir:
Je vous défendrais de l’orage;
Mais vous naissez le plus souvent
Sur les humides bords des Royaumes du vent.
La nature envers vous me semble bien injuste.

– Votre compassion, lui répondit l’Arbuste,
Part d’un bon naturel; mais quittez ce souci.
Les vents me sont moins qu’à vous redoutables.
Je plie, et ne romps pas. Vous avez jusqu’ici
Contre leurs coups épouvantables
Résisté sans courber le dos;
Mais attendons la fin.” Comme il disait ces mots,
Du bout de l’horizon accourt avec furie
Le plus terrible des enfants
Que le Nord eût portés jusque-là dans ses flancs.
L’Arbre tient bon ; le Roseau plie.
Le vent redouble ses efforts,
Et fait si bien qu’il déracine
Celui de qui la tête au Ciel était voisine
Et dont les pieds touchaient à l’Empire des Morts.

domingo, 12 de julho de 2015

Ficção XII - Última sessão

Olhou-se ao espelho e sorriu. Sob a luz rasante matinal que a exígua janela quadrada emprestava à casa de banho, o seu rosto era o mesmo. Mais cavado das rugas do tempo, mais maduro das dores da sobrevivência, era o mesmo rosto de vida, a mesma expressão de luta. E de vitória.
Olhou-se ao espelho e sorriu. O cabelo acastanhado que outrora lhe escorria sobre os ombros em ondas vaidosas suaves, desenhava-se agora discreto e curvilíneo, rasteiro ao couro cabeludo num despenteado ralo que já fora medo e vergonha para se tornar alívio. E esperança.
Baixou os olhos lentamente. Contemplou o corpo magro, vencida já a rejeição de não ser capaz de olhá-lo, debilitado pela angústia, fortalecido na resistência. E na luta: os ombros erguidos, o desenho enérgico e atraente dos braços. E o peito.
Houve uma comoção, uma espécie de estremecimento marejado nos seus olhos claros, ao observar-se assim, na crua nudez da condição humana: a falsa simetria do busto minado pela doença, talhado pela cura, reconstruído pelo ilusionismo da ciência e da técnica.
Olhou-se ao espelho e sorriu. Treze meses. Os sintomas, os receios, o diagnóstico, o pânico. A decisão de lutar, o desafio, a cirurgia e a recuperação. E a terapia. Sobrevivência. Treze meses de uma história de mergulho e recomeço, de escalada a pulso, de emergência e mutação. Ela mesma diferente, a mesma essência completa numa extensão amputada. E refeita.
Olhou-se ao espelho e sorriu. Uma força inexplicável crescia no seu íntimo, porque estivera sempre lá.
«Sou mulher!», gritou por dentro, «Sou mulher e estou viva!...»
Virou costas ao espelho, regressou ao quarto, vestiu-se. Era o dia da última sessão de radioterapia.
Sobrevivência. E vitória.
Sorriu.

sábado, 4 de julho de 2015

Bom Teatro

Não é preciso muito para fazer bom teatro. Basta que o pouco que se tem seja muito bom. RAPE – Estudo de um Ingénuo Amor é a prova disso mesmo.
O texto: há mentiras que nos fecham a ponto de nos tornarem prisioneiros da verdade que ocultamos; há obsessões que se abrem dentro de nós a ponto de criarem a única verdade pela qual conseguimos olhar o mundo. O autor, Andre Neely, esgrime estas duas armas com impressionante mestria, lançando-as na arena de uma história polémica. Ainda que possa ser algo previsível (pelo menos para quem partilha estes trilhos da escrita criativa), a peça é de uma incomodativa profundidade e de uma eloquência poderosa. Intensa. Como sabe bem ir ao teatro e deparar com um texto verdadeiramente bem escrito!...
A encenação: limpa e eficaz, revela uma leitura muito atenta e inteligente do texto. O espaço vazio das solidões (in)comunicantes, o frenesim das obsessões e das fugas, a escuridão dos silêncios e das verdades escondidas. As distâncias. E a luz a conduzir-nos, a dirigir o nosso olhar, a manipular a nossa visão da realidade. Como a mentira. E a reter-nos ali, a sufocar em nós a vontade de partir. Como a obsessão. O encenador, Leonardo Garibaldi, servindo o texto, concebeu uma gaiola de criatividade, estruturou o espaço e o tempo de modo a prender os atores (e o público?) na liberdade de ação que lhes concede.
As interpretações: Rita Silvestre e Rui Westermann, dois jovens atores de quem tenho tido o privilégio de acompanhar a evolução, confirmam neste trabalho a sua maturidade. Ambos seguríssimos tecnicamente (corpo, voz e ritmo), é na expressão de sentimentos que o contraste se define: ele é contido o suficiente, ela é necessariamente avassaladora; ele refugia-se num logos comedido, ela explode num pathos desgovernado. Desarmado e omnisciente, ele; perdida e demolidora, ela. Rui espera, Rita supera: a isso os condenam as suas personagens.
O modo como tudo acontece delicia-nos até à dilaceração. Duvidamos cinicamente da mentira dele, demasiado sincera para não ser verdadeira; ao invés, acreditamos dolorosamente na obsessão dela, sofrida demais para não ser um engano. E assistimos, com o regozijo da nossa impotência, à destruição daqueles dois seres tão brilhantemente construída. Intrigados até ao êxtase com o mistério das personagens, fascinados até à dor com o trabalho dos atores, conseguiremos ver ali o espelho de nós próprios? Verdade do teatro, mentira das nossas vidas…
Não é preciso muito para fazer bom teatro. Basta que o pouco que se tem seja muito bom. RAPE – Estudo de um Ingénuo Amor é a prova disso mesmo: texto, encenação, interpretações. E uma produção competente, capaz de combinar tudo isto em doses certas para no-lo servir em forma de arte. De inquietação. Inquietarte.


domingo, 28 de junho de 2015

Texto quadragésimo quinto

Porque é porventura a obra mais bem escrita da literatura portuguesa. Porque é decerto uma das mais profundas. Penetra no quotidiano de um homem para analisar a humanidade inteira no que tem de transcendente e vil.
Porque é uma prosa reveladora. E porque é certeira. Expõe, na dolorosa precisão de cada palavra, a contraditória essência da nossa condição de gente.
Porque é um livro feito do próprio paradoxo que retrata. Porque se assume desestruturado numa busca que lhe confere a consistência maior que o constitui. Sublime na sua fragilidade, é um livro grandioso na exposição da pequenez humana, simples na denúncia da sua complexidade.
Por tudo isto, o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, é uma das minhas obras preferidas, ocupa o pódio dos três melhores livros que já li. Que releio continuamente.

domingo, 14 de junho de 2015

Ficção XI - Reinscrever-me no tempo

Quereria reinscrever-me no tempo para recordar os dias em que o meu coração fervia em ânsias de martírio. Não fosse a doença que me acometeu ao chegar a Marrocos e por lá me quedaria, decerto morrendo às mãos do Islão, na prática assumida de anunciar o meu credo. Ao infundir-me uma moléstia que não desejei, foi o próprio Senhor a quem sempre me entreguei que me sonegou às mãos do destino que eu buscava, mais certo Ele do valor da minha vida que ciente eu próprio do sentido que pretendia dar-lhe.
No suposto regresso convalescente à terra lusitana onde nasci, novo transe – traição da natureza criada ou lealdade do Criador da natureza – me desviou: as peripécias de uma tormenta marítima desaguaram-me na Sicília e, como levado por imprevisível onda, transportaram-me a Assis e fizeram-me presente ao Capítulo da Ordem dos Frades Menores que abracei por inspiração daqueles pregadores que conheci em vida antes de rumarem ao norte de África e invejei na morte mártir que lá acharam.
Em Assis conheci o Irmão Fundador, que encontrei rodeado dos seus discípulos de origem. Sempre foi dito que ele profundamente se admirou da minha pessoa, mas essas versões da minha história mais não são que máscaras de lisonja ocultando o genuíno espanto que eu próprio senti perante os abismos de santidade que irradiavam de todos os membros daquela comunidade, e de Francisco mais que de qualquer outro. Acreditei, ali mais que nunca, que Deus é um abismo de luz que se alcança penetrando o nosso próprio íntimo, num mergulho que é feito dos gestos com que se assiste e alivia a pobreza alheia. A isso devotei a vida, cuidando que o meu saber acumulado – o trivium e o quadrivium aprendidos em Santa Maria Maior de Lisboa e aperfeiçoados em Santa Cruz de Coimbra – eram armas inúteis nesse processo, mais valendo sepultá-las no silêncio da meditação fecunda do que alardeá-las num exibicionismo estéril.
Na verdade, nunca fui acertado juiz de meus méritos, pois foi precisamente a minha erudição, em conjunto com a eloquência que dela brotava, que melhor me permitiram servir a Ordem, a Igreja, a humanidade e, em suma, o próprio Deus por quem sempre vivi. O tempo dos meus dias terminou em Pádua, sem que tenha tornado a ver a terra onde nasci e da qual mais tarde me fizeram patrono, consequência de ter sido canonizado (com uma brevidade que me deixa perplexo) e reconhecido como taumaturgo (com uma distinção que me esmaga a simplicidade).
Quereria reinscrever-me no tempo para, na eloquência que me atribuem, recordar aos homens os dias da minha vida e o que de mais importante deles ficou. Não esse mero folclore de santo casamenteiro, não apenas essa invocação chã do meu nome entre acordes de marcha popular, rimas de manjerico e cheiro a sardinha assada. Quereria reformular-me na imagem nítida das práticas disciplinadas da oração e do estudo – as virtudes que verdadeiramente me tornaram justo diante de Deus e valioso para os homens – em vez de continuar embaciado na velatura opaca dos prosaicos milagres que me atribuem e que fazem esquecer que, associado à graça divina, é o mérito de cada um que pode elevá-lo, não a complacência ou simpatia por narrativas mágicas da vida de qualquer outro.
Quereria reinscrever-me no tempo para aproximar-me dos homens que são como eu fui. Porém é condição dos santos – mesmo de um santo popular como eu – permanecerem encarcerados na sua seráfica beatitude, a uma eternidade de distância…

terça-feira, 9 de junho de 2015

Texto quadragésimo quarto

Porque olhar-te é gritar o amor que as palavras falham, ocas demais para a grandeza de que são mensageiras. Não há invólucro que possa forrar o ilimitado, nem atilho que prenda o eterno num embrulho de tempo.
Porque ser olhado por ti é sucumbir ao derrame da insuportável verdade. O imenso fulgor da tua essencial beleza queima a fraqueza dos meus olhos pedintes, jorra-me em lágrimas de um gozo cego da luz de ti.
Porque acordar ao teu lado é um sobressalto de paz indizível. É saborosa demais esta identidade de casulo do segredo das respirações só nossas, do entrelaçamento dos odores indisfarçados, da epidérmica colagem das emoções trazidas do íntimo.
Porque adormecer contigo é ressurreição em vida. Há um consolo de subsistência no longo prazer fugaz de largar as pressas e tensões que me esfaimam em morte quotidiana prolongada, há um mergulho de eternidade no prolongado instante de relaxamento sem medida em que se transcende a banal existência enterrada no seu peso numa leveza que a ressurge para um sentido maior. Talvez único.
Porque és tu.

domingo, 31 de maio de 2015

Texto quadragésimo terceiro

De repente, a surpresa. Um relance de olhos, o vislumbre da tua presença. A transcendência de ver-te na humana convicção da tua ausência. Uma aparição. Não te esperava, desejava-te na aparente intransponível distância. E, porque te desejava, vieste. Uma aparição.
Num repente, a beleza. No abalo de ver-te, a firmeza de me perceberes, a doçura da tua intenção plasmada no sorriso luminoso com que saudaste a perplexidade regalada do meu olhar. E o meu espanto entendeu logo a tua generosidade, tão de súbito como a tua ternura se deixou abraçar pela minha emoção. O belo é invisível, fulge na empatia oculta dos corações que se estreitam. O belo é indizível, grita silêncios de eternidade acima dos ruídos ocos da mera eloquência em que às vezes nos enganamos.
Num rompante, a certeza. Estamos juntos. Vieste porque estavas longe, vieste porque não estás longe. Chegaste num regresso do qual partes de novo, para me dizeres que ficas comigo nessa distância que eu entendo. É esta compreensão que nos estreita, porque, no teu desejo de proximidade de mim, é de ti próprio que não tens direito de afastar-te.
Surpresa, beleza e certeza. Na lonjura das distâncias medidas, há uma vizinhança de cumplicidade imensurável. De família. De amor.

domingo, 17 de maio de 2015

Sons de silêncio

Nova Iorque, Central Park, 19 de setembro de 1981. Sons de silêncio.

Um concerto de apenas música, conversa de letras cantadas pela presença dos intérpretes. Quando a arte se exprime na transparência das emoções, toda a parafernália de efeitos de luz, som, cor e movimento é um excesso que não faz diferença.

19 de setembro de 1981, Central Park, Nova Iorque. Sons de silêncio.

Noite mágica, 500 mil pessoas escutando o seu próprio silêncio nas duas vozes que o diziam, na metáfora que o gritava no íntimo. E continua.

Memorável, o evento. Profunda, a canção. Eterna, a mensagem.

Sons de silêncio. Aquilo de que precisamos.






domingo, 10 de maio de 2015

Décima segunda alegoria

Já não sei se é rima ou verso branco
O poema que eu construí
Com as folhas que vão deslizando
Sem destino, idade, hoje ou quando

Já não sei se é noite ou madrugada
Este sonho que eu descobri
Tão imenso, parece um deserto
Sem fronteiras, limite, longe ou perto

E o deserto
É um sorriso de criança
Onde ecoa o olhar da minha esperança

Já não sei se é sol ou lua nova
O sorriso que eu ensinei
Brando e leve como o trigo loiro
Mas tão rico, mais rico do que oiro

Já não sei se é sono ou despertar
A alegria que eu encontrei
Tão imensa, parece um deserto
Escaldante e de horizonte incerto

E o deserto
É um sorriso de criança
Onde ecoa o olhar da minha esperança

domingo, 3 de maio de 2015

Texto quadragésimo segundo

A primeira vez sem ti.
Um regresso aos lugares da infância, viagem de retorno ao sepulcro das memórias que não é possível exumar. A vida empurra-nos, o vento que nos sopra nas costas desloca-nos sem retorno, varre as pegadas da dor e do júbilo, bafeja-nos de uma resignação conformada ao vendaval das poeiras.
A primeira vez sem ti.
Há uma lonjura de álbum de recordações nas imagens que me chegam do passado contigo. Há uma injustiça nesta distância, uma abdicação nesta injustiça, um alívio nesta abdicação. E um remorso neste alívio.  
A primeira vez sem ti.
Os tempos vividos embalaram-se nos afetos navegados, amargaram nos desentendidos naufrágios, souberam a pouco nas ilusões ancoradas. Na nitidez do olhar à distância fica uma nostalgia triste do que poderia ter sido, a saudade enorme de um futuro impossível. A vida empurra-nos, o tempo e o espaço constrangem-nos, a memória denuncia-nos e a consciência condena-nos. Haverá um perdão que nos redima?...
Dia da Mãe. A primeira vez sem ti.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Texto quadragésimo primeiro

Orpheu.
Por estes dias, há precisamente cem anos. O abalo das palavras afiadas desmoronando provocações no marasmo, confundindo em sucessivas réplicas o encolher de ombros da aflitiva dormência.
Por estes dias, há precisamente cem anos. Um grito raivoso, um furacão inconsequente, um estrebuchar. Entre o estrangulamento financeiro do projeto, a incompreensão lorpa da turba, a mordaz oposição da suposta intelligentsia e o arrufo autofágico do próprio grupo de mentores (não é esse o infatigável cancro que sempre há de minar a nossa genialidade coletiva?...), o arrastão modernista esfumou-se numa traquinice saudável. Doentia, ao mesmo tempo. E rejeitada por isso: o país da saudade, amigo das lágrimas compungidas como um cristão de Sexta-feira Santa, não suportou a dor do dedo na ferida, a promessa de uma pedra removida, a energia do Modernismo.
Orpheu.
Por estes dias, há precisamente cem anos. Um clarão que se extinguiu em dois números nascidos como luz rasante na treva, e um terceiro abortado no abafo cruel do seu fogo sagrado. Ficam-nos os tesouros dados à luz, as palavras como pérolas, os poemas como colares desfiados para deleite de quem distingue a pureza da vulgaridade. A exemplo deste, de Mário de Sá-Carneiro, porventura o mais criticado dos escritos do primeiro número:

16

Esta inconstância de mim próprio em vibração
É que me há de transpor às zonas intermédias,
E seguirei entre cristais de inquietação,
A retinir, a ondular… Soltas as rédeas,
Meus sonhos, leões de fogo e pasmo domados a tirar
A torre d’ouro que era o carro da minh’Alma,
Transviarão pelo deserto, moribundos de Luar –
E eu só me lembrarei num baloiçar de palma…
Nos oásis, depois, hão de se abismar gumes,
A atmosfera há de ser outra, noutros planos:
As rãs hão de coaxar-me em roucos tons humanos
Vomitando a minha carne que comeram entre estrumes…
                                        
                                             *

Há sempre um grande Arco ao fundo dos meus olhos…
A cada passo a minha alma é outra cruz,
E o meu coração gira: é uma roda de cores…
Não sei aonde vou, nem vejo o que persigo…
Já não é o meu rastro o rastro d’oiro que ainda sigo…
Resvalo em pontes de gelatina e de bolores…
Hoje, a luz para mim é sempre meia-luz…

……………………………………………………………
……………………………………………………………

As mesas do café endoideceram feitas ar…
Caiu-me agora um braço… Olha, lá vai ele a valsar
Vestido de casaca, nos salões do Vice-Rei…

(Subo por mim acima como por uma escada de corda,
E a minha Ânsia é um trapézio escangalhado…).

sábado, 18 de abril de 2015

Dizer a Imagem 9 - Experiência


Nasceste numa inspiração. Exististe como um sopro, proclamaste a verdade como um trânsito. Sabias-te efémero.
Viveste enquanto te concederam a vida. Tiveste a longevidade da nossa coragem de sustentar-te, inscreveste-te no calendário da nossa aceitação de ti. Sem morada permanente, tinhas os dias contados.
Depois, calaste-te como um fim. A tua voz extinguiu-se, a tua seiva ressecou. A tua cabeça decepada diz os teus olhos cerrados numa profecia calada. Ecoa apenas, no silêncio da lembrança habitada, a Palavra que és. Persistente e incómoda, piedosa e terrível. Sedutora e indizível.
Seguro-te na tremura dos meus dedos, unhas roídas no desespero de teres acabado. Retenho-te pelos fios de uma memória hirsuta, floresta de emoções plantada em mim. Conservo-te em tudo o que me tornei contigo, por ti.
Teatro. A experiência transformadora.
Aprendizagem de morte. Desejo de vida. Poder da arte.

(Fotografia de Jorge Figueiredo, na última apresentação de O Poder e o Desejo)

domingo, 12 de abril de 2015

O Poder e o Desejo (5)


Tem razão quem afirmou que «o teatro é a aprendizagem da morte, porque é a experiência das coisas que acabam». Quem trabalha em teatro descobre a inevitável efemeridade de tudo o que se vive. Toda a vida é transitória. Permanece a lembrança, a força de uma recordação que, segurando-se à distância elástica do tempo, se faz memória na esperança de se escrever História. Terminada a última apresentação, O Poder e o Desejo é já uma memória. A amarga nostalgia doce de um processo pleno, que nos revolveu em profundidade.

Primeiro, o texto. O enamoramento do tema, a conquista de uma relação na pesquisa aturada, o compromisso na decisão de escrever. E a criação, a engenharia da estrutura e a arquitetura da forma, a cálida gestação da busca de um discurso, o parto dolorido das palavras encontradas.

A seguir, a definição do projeto. A decisão demorada de abraçar um texto que nos extravasava, a opção subversiva por uma encenação minimalista e intrusiva, que haveria de incomodar o público na medida em que o deliciasse, que faria crescer os atores na medida em que os esquartejava impiedosamente e sem defesa.

Depois, o processo criativo. A construção da personagem: corpo e sentimento, biomecânica, gesto habitado, voz, entoação e intenção. A criação do papel: busca de referências, pesquisa histórica e bíblica, o mergulho nas teorias do teatro, seleção e adequação, desmontagem do texto, análise e síntese. A implantação de cena: a depuração, a busca do máximo efeito nos mínimos objetos, pôr em jogo os atores como veículos do texto, assumir o teatro-Palavra, Wagner e Prokofiev a forrarem o tesouro.

Por fim, a partilha. A vontade de mostrar, o privilégio de ser visto. O aplauso generalizado à entrega dos atores, a unânime aclamação da força do texto. E a encenação, como quase sempre, a diluir-se na sua eficácia subtil. As sucessivas apresentações como degraus de uma superação sem limite. O abandono total da lógica de espetáculo, a ausência da noção de produto acabado. Cada apresentação como a continuação do processo, um constante aperfeiçoamento. Como iguaria suculenta a apurar em lume brando.

O Poder e o Desejo. Quase dois anos de um percurso cheio, desde o primeiro lampejo na mente solitária até ao último apagamento das luzes de cena, sob o olhar coletivo de um público rendido. O prazer de fazer o que se gosta, o gosto de estar no que se faz. A graça de viver uma experiência transformadora. E partilhá-la.

O Poder e o Desejo. A força de poder. A fraqueza de desejar. O mistério da criação, o sortilégio da arte. A condição humana. E a transcendência.

Uma memória que ficará escrita na minha história!

sábado, 4 de abril de 2015

Páscoa!

Páscoa!

Libertação, superação, transcendência. Vida!

Nesta Festa da Liberdade (haverá maior liberdade do que o ato de livre entrega da própria vida, a fim de gerar mais vida?...), partilho aqui uma peça musical belíssima, muitas vezes usada em celebrações pascais e interpretada, nesta versão, em grande fidelidade ao formato original.

Feliz Páscoa para todos!




domingo, 29 de março de 2015

O Poder e o Desejo (4)




«Posso chegar a um espaço vazio qualquer e fazer dele um espaço de cena. Uma pessoa atravessa esse espaço vazio enquanto outra pessoa observa – e nada mais é necessário para que ocorra uma ação teatral».

Estas palavras de Peter Brook estiveram na base do conceito de escrita de O Poder e o Desejo: o texto, carregado nas palavras e espartilhado na forma clássica da tragédia, aligeirou-se nas referências de implantação no espaço cénico.

Inspirada por essa sugestão, a encenação original afastou-se deliberadamente de padrões visuais historicistas: esvaziada a cenografia e despidas as personagens de quaisquer marcas de época ou caráter, ficaram apenas os corpos dos atores nas suas roupas essenciais de trabalho, partilhando um chão comum com os espetadores. Se Peter Brook deu o mote para a escrita, o teatro pobre de Grotowski inspirou a encenação.

A intenção de todo este minimalismo foi criar um espetáculo que coubesse numa mala de viagem, para que pudesse ser levado a qualquer sítio, preencher qualquer espaço vazio. Para que os ecos da Palavra que ele procura transmitir pudessem ressoar mais longe, para que a partilha de reflexões e sentimentos que ele tenta suscitar pudesse alcançar mais fundo. E porque o teatro, no seu estado mais «bruto» (outra vez segundo Peter Brook), pode acontecer em qualquer tempo e lugar.

Justificada por tudo isto, a oportunidade de apresentar O Poder e o Desejo na capela do Externato Marista de Lisboa inscreve-se ainda, porque se trata de uma história inspirada num episódio bíblico, no retomar de uma tradição ancestral da cultura europeia: a representação de «Mistérios», dramatizações de narrativas extraídas da Bíblia que tinham lugar nos adros das igrejas ou, frequentemente, no seu interior.

Evidentemente, a intenção eminentemente catequética ou moralizante dos Mistérios medievais dá aqui lugar a uma dimensão mais interpelativa e provocatória, centrada nas palavras e nas emoções que delas brotam. E inscrita numa estética de tragédia clássica que o texto ensaia, que a encenação procura e que o espaço agora escolhido evoca talvez melhor do que qualquer outro.

De toda a depuração formal sairão reforçados – assim o esperamos – os sentimentos assumidos pelos atores nas personagens que interpretam. Pois, se Peter Brook deu o mote para a escrita e o teatro pobre de Grotowski inspirou a encenação, é sempre Stanislavski que espreita por detrás do trabalho de criação dos papéis.

Por tudo isto, a reposição de O Poder e o Desejo, nos dias 9, 10 e 11 de abril, na capela do Externato Marista de Lisboa, é uma ocasião única e imperdível. Talvez a última.