domingo, 28 de agosto de 2016

Texto sexagésimo sexto

Com que palavras se diz a nossa fragilidade? Dizemos «terramoto» para lembrar a tragédia de múltiplas vidas soterradas nos escombros de décadas de edificação, ou simplesmente no acaso de estar ali. Dizemos «incêndios» para gritar a misteriosa injustiça dos infernos deflagrados a horas mortas que reduzem a cinzas os sonhos de tantas horas vivas, pondo vidas em risco durante horas infindas. Dizemos «terrorismo» para denunciar os incompreendidos fanatismos mundiais que camuflam as nossas intolerâncias de bairro. Dizemos «guerra» para nos revoltarmos contra os ódios seculares que massacram povos a uma escala numérica maior que as nossas desavenças familiares. Dizemos «cancro» para chorar a impotência contra todos os monstros que crescem dentro de nós mesmos. E dizemos tantas outras palavras que soam a becos sem saída, nesta ânsia de salvação que nos corre nas veias.
Mas não conseguimos dizer «culpa», porque raramente sabemos a quem atribuí-la. Por isso dizemos «humanidade», que é talvez a forma mais descomprometida de justificarmos a nossa fragilidade.
O problema… é que queremos mais.

domingo, 21 de agosto de 2016

Texto sexagésimo quinto

Quero louvar-te, deus de todos os nomes e de todos os credos, da humanidade inteira e de todos os seres, da natureza viva e inanimada, de todo o visível e invisível, do imenso existente e do muito mais que há de existir. Quero afirmar que acredito que és e que estás comigo, acredito na tua essência em mim e na minha existência em ti. E sei que ambas me ligam a todos os seres e a tudo.
Como gostaria de ter palavras que dissessem a gratidão que sinto por toda a energia que derramas sobre mim na minha própria vida!... Sinto todos os dias um manancial de esperança e festa brotando do meu íntimo e sei bem que, nascendo em mim, este rio não é criação minha, ainda que não possa correr fora de mim. Porque eu sou na medida da inundação dele e ele apenas pode ser na minha vontade de permiti-lo. E, como eu, todos os seres. Pois tudo vem de ti.
Por isso me curvo diante de ti, deus de todos os nomes e credos, encolhido no remordimento dos vazios todos que se expandem por mim adentro e me fazem pouco mais que uma falsa vontade de existir em ti. Peço-te perdão por todo o sangue destruidor que derramo nos fluidos vivificadores que retenho pelo medo ignóbil de perder-me ao transbordá-los. Peço-te perdão por não saber nem arriscar ser mais feliz do que esta ideia mesquinha de satisfação própria que compreendo e aplico à minha limitada existência. Peço-te perdão por não ser capaz. E, como eu, todos os seres. Humanos.
E hoje, neste dia que é mais um e será o último para muitos de nós, inscritos no mistério de um tempo ignoto, entrego-te a inteira família humana, esta multidão de peregrinos que busca salvação por todos os caminhos possíveis. E pelos impossíveis também, quando não há outros. Entrego-te a gente toda, fonte e sinal de vida, da tua vida em nós, das nossas vidas em ti. Entrego-te todas as famílias do mundo, de qualquer número e género, pois todas são exemplo ou anseio de comunhão e amor. Entrego-te a minha família, que brota de mim como eu broto de ti, que vive em ti como eu vivo nela. Que amo mais que tudo, na profundidade espiritual desta proximidade carnal. 
E consagro-te enfim, deus de todos os nomes e credos, todos os seres do universo que, não sendo humanos, são minha família também. Toda a natureza viva e inanimada, todo o visível e invisível, o imenso existente e o muito mais que há de existir. Quem dera saibamos, todos juntos, construir e preservar a harmonia cósmica por ti sonhada. Pois tudo vem de ti e a ti regressa.