quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Happy New Year!

Era o fim dos anos setenta.

Éramos todos sonhadores, erguíamos os punhos com diferentes intenções por ideais valiosos e vários. E envergonhávamo-nos um pouco de assumir que ouvíamos esta música.

Não obstante, na «vulgaridade» do seu pseudo-sentimentalismo comercial, ela dizia um pouco dos nossos sonhos de harmonia e paz para o mundo, falava docemente dos valiosos e vários ideais amargos pelos quais erguíamos os punhos com diferentes intenções. Por isso, talvez por isso, a ouvíamos.

Era o final dos anos setenta, foi um pouco o final dos nossos sonhos, ou melhor, dos nossos ideais (será o mesmo?...). Hoje, já pouco erguemos os punhos... E por isso, talvez por isso, já pouco nos envergonhamos de dizer que ouvíamos esta música.

Ela aqui está. Conserva a «vulgaridade» do seu pseudo-sentimentalismo comercial. Para que nós acordemos os nossos sonhos. E voltemos a erguer os punhos com diferentes intenções por ideais valiosos e vários.

Feliz Ano Novo!

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

A paz por um canudo

Há 101 anos, no dia de Natal de 1914, no cenário da Primeira Guerra Mundial, na terra de ninguém entre trincheiras da Frente Ocidental, soldados ingleses e alemães encontraram-se, trocaram apertos de mão e bebidas, tiraram fotografias e até jogaram futebol. Conta-se como tendo sido um acontecimento isolado e localizado, um episódio fugaz e circunscrito, num intervalo de batalhas que durou apenas o tempo da distração das chefias. E logo a carnificina recomeçou: os homens treinados para se matarem não podem ceder à fraqueza de afetos com rosto, nem dar-se ao luxo de se (re)verem noutros homens, ou de verem outros homens em si próprios.
Porém, os historiadores (essa espécie subversiva que desenterra memórias e constrói narrativas a partir delas) falam de mais de vinte casos simultâneos, ao longo de mais de quarenta quilómetros da linha de trincheiras. Terá havido ocorrências semelhantes noutros lugares daquela guerra a que muitos já não atribuíam sentido? Alguns escritores, dessa espécie indomável que inventa narrativas para lá das memórias, consideram tal hipótese mais do que provável: os homens criados para se amarem não podem ceder à fraqueza de ódios anónimos, nem dar-se ao luxo de se cegarem diante de outros homens, ou de verem diante de si outros homens cegos de si mesmos.
No assustado mundo de hoje, que foge para as guerras complexas por medo da simplicidade da paz, esta história do Natal de há um século é mais que uma memória. É uma provocação. Evoco-a aqui, através do videoclip de uma canção que, segundo parece, nunca terá sido cantada ao vivo (sabe-se lá porquê…!).
É uma metáfora do nosso mundo: a paz por um canudo. Mas vê-se. Existe.
Feliz Natal!

domingo, 13 de dezembro de 2015

Décima quarta alegoria

e se de repente
escorridas
as armas
cansadas do riste
pendidos
os braços
líquidos de chão
longe
o olhar
limpo num sonho
teimoso de não querer
acordar
alegre da tristeza
esquecida

e se de repente
os braços de novo
erguidos em afeto
agora
as armas de novo
firmes como pão
agora

e se de repente
sepultada
a luta ressuscitada
a seiva luz
na treva sombra
no clarão harmonia
no mundo
todo

e se de repente
sorriso
perdão
compaixão
amor

e se de repente
deus
o homem
feliz

sábado, 5 de dezembro de 2015

«Macbeth», pelo Teatro Experimental de Cascais

O espaço vazio, o chão negro das rivalidades humanas, a ambição insensível e dura a erguer-se dele como menires de ferro ancestrais, memórias de lutas passadas cravadas como pilares. A luz errando como desejos perseguidos, descobrindo virtudes e ocultando perversidades (ou o contrário). E o som: ecos da consciência como ondas gordurosas, o remorso no sobressalto de trovões. Sobre todo este manto, as palavras grandiosas e os atores que as defendem. E mais nada.
Há quem diga que Shakespeare deve ser encenado assim. Sem o abuso de ornamentos, sem artifícios nem rede. Na corajosa transparência de um texto que já contém tudo e onde as opções cénicas são meros sublinhados de uma leitura que se partilha. É assim o Macbeth do TEC.
A tradução de Miguel Graça é cuidadosa, não rouba ao texto senão o inevitável (e digo-o, tendo assistido, há menos de três meses, a uma representação na língua original em Stratford-upon-Avon). De resto, Shakespeare é demasiado universal, grita verdades que estão para lá das línguas e não sufocam no labirinto delas.
A encenação de Carlos Avilez é extraordinária na grandeza da sua simplicidade: ousa submeter-se ao texto, vira-se inteiramente para ele, numa espécie de vénia sábia que se rende ao fluxo das palavras sem nunca renunciar a conduzir o ritmo do drama. Sem o abuso de ornamentos, ou talvez no abuso da ausência deles.
A representação dos atores é, neste contexto, coragem pura: sem artifícios nem rede, soltos na arena e inermes até nas espadas que empunham, lutam com um texto esmagador ao qual se entregam no sacrifício redentor de vivificá-lo. E a nós.
Há quem diga que o teatro é isto: um espaço vazio, um texto cheio. E atores que se esvaziam no texto preenchendo o espaço, preenchendo-se no espaço. E a nós.
É por isso que Shakespeare deve ser encenado assim. Porque o teatro é isto. Porque Macbeth.

No Teatro Municipal Mirita Casimiro. Até 27 de dezembro.
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