segunda-feira, 27 de abril de 2015

Texto quadragésimo primeiro

Orpheu.
Por estes dias, há precisamente cem anos. O abalo das palavras afiadas desmoronando provocações no marasmo, confundindo em sucessivas réplicas o encolher de ombros da aflitiva dormência.
Por estes dias, há precisamente cem anos. Um grito raivoso, um furacão inconsequente, um estrebuchar. Entre o estrangulamento financeiro do projeto, a incompreensão lorpa da turba, a mordaz oposição da suposta intelligentsia e o arrufo autofágico do próprio grupo de mentores (não é esse o infatigável cancro que sempre há de minar a nossa genialidade coletiva?...), o arrastão modernista esfumou-se numa traquinice saudável. Doentia, ao mesmo tempo. E rejeitada por isso: o país da saudade, amigo das lágrimas compungidas como um cristão de Sexta-feira Santa, não suportou a dor do dedo na ferida, a promessa de uma pedra removida, a energia do Modernismo.
Orpheu.
Por estes dias, há precisamente cem anos. Um clarão que se extinguiu em dois números nascidos como luz rasante na treva, e um terceiro abortado no abafo cruel do seu fogo sagrado. Ficam-nos os tesouros dados à luz, as palavras como pérolas, os poemas como colares desfiados para deleite de quem distingue a pureza da vulgaridade. A exemplo deste, de Mário de Sá-Carneiro, porventura o mais criticado dos escritos do primeiro número:

16

Esta inconstância de mim próprio em vibração
É que me há de transpor às zonas intermédias,
E seguirei entre cristais de inquietação,
A retinir, a ondular… Soltas as rédeas,
Meus sonhos, leões de fogo e pasmo domados a tirar
A torre d’ouro que era o carro da minh’Alma,
Transviarão pelo deserto, moribundos de Luar –
E eu só me lembrarei num baloiçar de palma…
Nos oásis, depois, hão de se abismar gumes,
A atmosfera há de ser outra, noutros planos:
As rãs hão de coaxar-me em roucos tons humanos
Vomitando a minha carne que comeram entre estrumes…
                                        
                                             *

Há sempre um grande Arco ao fundo dos meus olhos…
A cada passo a minha alma é outra cruz,
E o meu coração gira: é uma roda de cores…
Não sei aonde vou, nem vejo o que persigo…
Já não é o meu rastro o rastro d’oiro que ainda sigo…
Resvalo em pontes de gelatina e de bolores…
Hoje, a luz para mim é sempre meia-luz…

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As mesas do café endoideceram feitas ar…
Caiu-me agora um braço… Olha, lá vai ele a valsar
Vestido de casaca, nos salões do Vice-Rei…

(Subo por mim acima como por uma escada de corda,
E a minha Ânsia é um trapézio escangalhado…).

sábado, 18 de abril de 2015

Dizer a Imagem 9 - Experiência


Nasceste numa inspiração. Exististe como um sopro, proclamaste a verdade como um trânsito. Sabias-te efémero.
Viveste enquanto te concederam a vida. Tiveste a longevidade da nossa coragem de sustentar-te, inscreveste-te no calendário da nossa aceitação de ti. Sem morada permanente, tinhas os dias contados.
Depois, calaste-te como um fim. A tua voz extinguiu-se, a tua seiva ressecou. A tua cabeça decepada diz os teus olhos cerrados numa profecia calada. Ecoa apenas, no silêncio da lembrança habitada, a Palavra que és. Persistente e incómoda, piedosa e terrível. Sedutora e indizível.
Seguro-te na tremura dos meus dedos, unhas roídas no desespero de teres acabado. Retenho-te pelos fios de uma memória hirsuta, floresta de emoções plantada em mim. Conservo-te em tudo o que me tornei contigo, por ti.
Teatro. A experiência transformadora.
Aprendizagem de morte. Desejo de vida. Poder da arte.

(Fotografia de Jorge Figueiredo, na última apresentação de O Poder e o Desejo)

domingo, 12 de abril de 2015

O Poder e o Desejo (5)


Tem razão quem afirmou que «o teatro é a aprendizagem da morte, porque é a experiência das coisas que acabam». Quem trabalha em teatro descobre a inevitável efemeridade de tudo o que se vive. Toda a vida é transitória. Permanece a lembrança, a força de uma recordação que, segurando-se à distância elástica do tempo, se faz memória na esperança de se escrever História. Terminada a última apresentação, O Poder e o Desejo é já uma memória. A amarga nostalgia doce de um processo pleno, que nos revolveu em profundidade.

Primeiro, o texto. O enamoramento do tema, a conquista de uma relação na pesquisa aturada, o compromisso na decisão de escrever. E a criação, a engenharia da estrutura e a arquitetura da forma, a cálida gestação da busca de um discurso, o parto dolorido das palavras encontradas.

A seguir, a definição do projeto. A decisão demorada de abraçar um texto que nos extravasava, a opção subversiva por uma encenação minimalista e intrusiva, que haveria de incomodar o público na medida em que o deliciasse, que faria crescer os atores na medida em que os esquartejava impiedosamente e sem defesa.

Depois, o processo criativo. A construção da personagem: corpo e sentimento, biomecânica, gesto habitado, voz, entoação e intenção. A criação do papel: busca de referências, pesquisa histórica e bíblica, o mergulho nas teorias do teatro, seleção e adequação, desmontagem do texto, análise e síntese. A implantação de cena: a depuração, a busca do máximo efeito nos mínimos objetos, pôr em jogo os atores como veículos do texto, assumir o teatro-Palavra, Wagner e Prokofiev a forrarem o tesouro.

Por fim, a partilha. A vontade de mostrar, o privilégio de ser visto. O aplauso generalizado à entrega dos atores, a unânime aclamação da força do texto. E a encenação, como quase sempre, a diluir-se na sua eficácia subtil. As sucessivas apresentações como degraus de uma superação sem limite. O abandono total da lógica de espetáculo, a ausência da noção de produto acabado. Cada apresentação como a continuação do processo, um constante aperfeiçoamento. Como iguaria suculenta a apurar em lume brando.

O Poder e o Desejo. Quase dois anos de um percurso cheio, desde o primeiro lampejo na mente solitária até ao último apagamento das luzes de cena, sob o olhar coletivo de um público rendido. O prazer de fazer o que se gosta, o gosto de estar no que se faz. A graça de viver uma experiência transformadora. E partilhá-la.

O Poder e o Desejo. A força de poder. A fraqueza de desejar. O mistério da criação, o sortilégio da arte. A condição humana. E a transcendência.

Uma memória que ficará escrita na minha história!

sábado, 4 de abril de 2015

Páscoa!

Páscoa!

Libertação, superação, transcendência. Vida!

Nesta Festa da Liberdade (haverá maior liberdade do que o ato de livre entrega da própria vida, a fim de gerar mais vida?...), partilho aqui uma peça musical belíssima, muitas vezes usada em celebrações pascais e interpretada, nesta versão, em grande fidelidade ao formato original.

Feliz Páscoa para todos!