domingo, 30 de agosto de 2015

Texto quadragésimo nono

Não são muitas as recordações que ele conserva da escola primária. Aqueles anos decorreram com a fluidez insensível de uma realidade estática, uma espécie de presente compacto que não se sente avançar, qualquer coisa como uma eternidade confortável. Foi um tempo em que ele não se preocupou com o que ficava para trás ou com o que poderia estar para vir. Se permanecesse para sempre criança, coisa sobre a qual nunca se interrogou, o externato onde frequentou a escola primária, situado a meio da avenida que partia da igreja onde se perdia do mundo e desembocava na mata onde se reencontrava consigo seria um bom lugar para ser. E nada mais.
Mais tarde ele consideraria aquela fatia de passado como uma das duas fases da sua vida em que valeria a pena o tempo ter parado. Mas isso foi quando já tinham nascido as interrogações, as preferências e as amarguras. Antes tratava-se apenas do presente inquestionável que havia e é por isso que não são muitas as recordações que ele conserva. O armazenamento das lembranças é uma operação que se desenvolve na proporção direta do receio da perda e, então, nada estava perdido. Tudo era, simplesmente.

domingo, 23 de agosto de 2015

Texto quadragésimo oitavo

A casa.
Olhou em volta e reconheceu-se em tudo o que via. Porque toda a casa gritava a presença dos seus ascendentes. Era o seu bisavô nas traves mestras de madeira centenária; era o seu avô na marcenaria apurada de todos os móveis; era o seu tio na negligência dos cinzeiros espalhados por toda a parte, mas também na minuciosa catalogação das chaves de cada um dos armários e gavetas; e era, sobretudo, o seu pai no desvelo cuidadoso da preservação daquele mundo, na esquadria funcional da organização do espaço, na longínqua visão de futuro da conservação do passado. E era também, claro, a sua mãe na ternura bizarra do amor-ódio com que marcara impressões digitais por toda a parte.
A casa de família.
Olhou em volta e reconheceu-se em tudo o que via. Porque toda a casa desembocava nele, havia uma história dele gravada naquilo tudo. E, mascarada embora pelo moderno reboco das empenas, coberta pela impecável polidez das telhas recentes, vivia ali uma alma que o habitava.
A casa de família na aldeia.
Olhou em volta e reconheceu-se em tudo o que via. E percebeu que não podia desfazer-se de si mesmo. E reaprendeu o valor da História.

sábado, 15 de agosto de 2015

Texto quadragésimo sétimo

Férias na província. Um mergulho na natureza, um cheiro de terra quente e seca, uma respiração essencial e pura. Um afastamento, um jejum tecnológico com sabor a conversão, um olhar expandido às estrelas em grito de liberdade.
Férias na província. Um rústico aconchego caseiro, uma precariedade de tábuas, a exiguidade apetitosa. E um sufoco de brasas, iguarias crestadas sobre a grelha numa simplicidade primitiva. Odor a lenha, sabor a vida.
Férias na província. Um encontro com o ancestral, um espelho de perenidade que me mostra frágil e transitório. Uma noção de eterno retorno, um vislumbre de Idade de Ouro, qualquer coisa de genesíaco numa quietude de paraíso perdido.
Férias na província. Um folhear de passado. Eu num cenário exterior a mim. Identidade na diferença. Reencontro.