domingo, 29 de outubro de 2017

Décima nona alegoria

Na luz do teu olhar
                                lanterna
Na força do teu corpo
                                     arma
Nos gestos que desdobras
                                             dúvidas
Na esgrima das perguntas
                                             troca
Percebo a fome e a pesca
o desejo e a busca
o horizonte e a gruta

A espera em que te abres
ao mundo é a corrida
em que te adentras

Posse de tudo
o que te falta escavas
em ti o que procuras

Crescer

domingo, 22 de outubro de 2017

Texto octogésimo sexto

Encararam-se demoradamente, os olhares pesados de emoções reinventadas. Encostada à parede, a música trotava num crescendo que germinava neles uma ira fabricada, tecida com memórias e acasos. Sustentaram os olhares teimosos, despindo-se das circunstâncias do dia na veste negra inexpressiva que envergavam. Seguraram a fúria até ao limite, nos punhos cerrados daquela fixação obstinada.
E, de repente, a música soltou-se numa rebentação, explodiu e inundou a sala acolchoada. E eles atiraram-se um ao outro, libertaram-se de si próprios num confronto que os atou, peles friccionadas num atrito de vontades, corpos entrelaçados numa mistura de emoções. Rolaram pelo chão nas carnes sobrepostas, manietaram-se nos golpes demolidores, prenderam-se num frenesim de fugas. A música não baixava, não reduzia o caudal de submersão. E eles entregaram-se na luta em que se esqueceram de quem eram, alheios a espaço, tempo e circunstância. Transportaram-se das suas vidas, inventaram-se noutra dimensão, transpuseram o portal. Libertaram-se.
No fim, exaustos da viagem, descansaram arquejantes nos suores misturados da metamorfose. Eram espíritos fundidos num magma de corpos. Mas logo se reergueram gratificados no cansaço que os revigorava, encararam-se por um instante, confortados na consciência de já serem outros. Livres.
E, afastando-se, perfilaram-se nas devidas posições. O exercício terminara. Chegara o momento de ensaiar a primeira cena.

domingo, 15 de outubro de 2017

Texto octogésimo quinto

Geraste-te no meu silêncio, fecundado por este imparável olhar que faz entrar por mim adentro toda a visão do ser que já me está no íntimo muito mais. Cresceste-me no casulo das entranhas, metamorfoseaste-te de perceção em palavra e não me deste alternativa. Nasceste num gesto generoso de mim, espalhei-te em volta para que soltasses o primordial vagido na boca de todos os que então te leram em voz alta, sentados em círculo no segredo do chão, rodeando o fogo sagrado que havia de fazer-te crescer.
Eras texto de teatro mas não te bastava. A energia toda que eras não podia conter-se na pequenez imberbe das palavras escritas. Por isso te implantámos em cena, demo-nos a ti nas palavras e intenções em que te deste a nós, invocámo-nos em ti naquilo em que te convocavas para nós. Amadurecemos-te até seres adulto e crescemos por dentro na tua maturação. E estreámos-te e representámos-te. Viveste plenamente na vida plena que nos foste.
Foi há onze anos.
E depois morreste. Sem queixumes, pois sabias que essa era a tua sorte destinada. E um pouco de nós morreu contigo no derradeiro apagar das luzes da última cena, ensinaste-nos a morte na vida que nos deste: «o teatro é a aprendizagem da morte, porque é a experiência das coisas que acabam». Sabemos que essa é a nossa sorte destinada.
Foi há onze anos.
Mas ficaste-me tanto cá dentro, desde aí!... Coloriste-me a memória, chamaste-me repetidamente nos interregnos em que ignorava o fogo sagrado porque outros lumes me queimavam, ecoaste-me nas entrelinhas de outros textos que fui celebrando. Ficaste-me tanto!... (Não é de estranhar: geraste-te no meu silêncio, cresceste-me no casulo das entranhas, nasceste num gesto generoso de mim… Como poderia ser de outro modo?)
Por isso agora te ressuscito. Convoco-te mais uma vez do sepulcro em que te engavetei, quero trazer-te de volta à vida para que de novo me faças viver. Transfiguro-te para que sejas outro sem deixares de ser o mesmo, porque assim é a natureza e assim é o homem, e tu és Natureza e tu és o Homem.
Ressuscito-te agora, porque és texto de teatro e não te basta. A energia toda que és não pode conter-se na ridícula mortalidade de uma lembrança saudosa. Vamos pôr-te em cena outra vez para que outra vez vivas nas palavras e intenções que digamos e na nossa forma de dizê-las, porque tu és tudo isso que nós somos. E para que vivas também do outro lado, nos olhares que observem, nos corações que se emocionem, nas entranhas que estremeçam. Porque tu és tudo isso também.
És a Natureza e o Homem. E todos precisamos de ti!

domingo, 1 de outubro de 2017

Texto octogésimo quarto

Votar. Um direito, um dever cívico. Um direito conquistado, um dever que decorre da própria conquista do direito.
Votar. A política como obrigação, não pode ser outra coisa. Porque a democracia não é um somatório de direitos, mas uma arquitetura de deveres: é do compromisso de cada um que nasce a liberdade de todos. E dele próprio.
Votar. Uma imperiosa necessidade individual e coletiva. E colorida. Não posso ser a voz de outro, nenhum outro tem direito ao grito que eu devo. Todos juntos seremos a harmonia de variedade que o mundo precisa de ouvir. E aprender, porque a democracia não deve ser uma ditadura de maiorias, mas um entendimento de diversidades.
Votar. A diversidade em ato.