domingo, 28 de fevereiro de 2016

Texto quinquagésimo sétimo


Talvez desta forma o fim. Um virar de costas, os passos ritmados, o espaço transposto num tempo abraçado. Acabar tudo.
A luz que se extingue, o som que se cala. Silêncio. Escuro. Pouco mais que um simples sossegar. Depois, os aplausos. Tudo como dantes. As mãos estalam na transposição dos umbrais da caverna da criação, resgatadas para uma realidade forçosamente estranha. Mas os aplausos. Tudo como dantes. O regresso às tábuas, a vénia, o sorriso. O mesmo sítio. Agora como se estranhasse ver-se ali, a chegar, a ficar-se. Os aplausos, o estalo das mãos resgatadas, a vénia e o sorriso. Acabar tudo. O mesmo sítio. Ou outro. Onde sempre. No reboliço da sua mente, onde resta tudo no fundo de dentro de si, uma palavra que não consegue apanhar. Um recomeço onde sempre. Acabar tudo. Começar nada.
Talvez desta forma o fim. Os aplausos, a vénia e o sorriso. Tudo como dantes. O mesmo sítio de nunca. Ou outro. Onde sempre. Nada que indique que não seja outro onde sempre. Acabar tudo. Começar nada. Pouco mais que um simples sossegar. Depois tudo como antes onde nada como antes. Porque a arte desassossega. As mãos estalam na transposição dos umbrais da caverna da criação, resgatadas para uma realidade forçosamente estranha, a palavra que falta onde sempre a partir daqui.
Talvez desta forma o fim. Acabar tudo. Começar nada. Arte, criação. A palavra que falta. Onde sempre a partir daqui.

(Fotografia de José Lorvão, na apresentação teatral de O Relógio)

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Texto quinquagésimo sexto

Um como que destino, uma espécie de rumo obrigatório. Um chamamento.
Sozinho no imenso vazio da caixa negra, abandonado à pequenez da sua vida ignorada, do seu nascimento anónimo, do seu crescimento discreto e do seu quotidiano inócuo, ele sentiu-se crescer na força galopante do progressivo desnudamento. Sozinho no imenso vazio da caixa negra, lembrou-se de que, momentos antes, depois do desejo ardente de ali chegar, quisera não estar ali. De que se empurrava a partir de dentro, fizera-o desde sempre, teimosamente. Insistentemente, por reconhecer um espaço vital naquele imenso vazio da caixa negra. Um como que destino.
Aquecido no banho envolvente da luz vertical, iluminado por aquela ilusão de onde nunca até para sempre, rendeu-se à própria teimosia de ali chegar. O espaço vital, imenso perante a sua pequenez abandonada, reduzia-se, moldava-se num encolhimento aveludado à expansão poderosa do seu progressivo desnudamento. Como se não houvesse outro sítio. Como se nenhum lugar além daquele pudesse recebê-lo, acolher a teimosia de ali chegar, testemunhar a expansão poderosa. O desnudamento. Nenhum lugar além daquele. Uma espécie de rumo obrigatório.
Desnudado, deixou-se ir naquele ímpeto controlado. Dos movimentos, dos gestos, das palavras e dos silêncios. E percebeu uma voz maior, exterior a si por dentro de si, que o convocava a ser corpo, ação, emoção e fala. Sentiu-se transcendido e incorporado na transcendência, simultaneamente fator e facto, oleiro e barro. Criador e suporte da obra criada. Deixou-se ir, porque dentro de si ele era todas as coisas fora de si. Porque fora de si tudo lhe estava dentro. Uma voz maior. Um chamamento.
Um como que destino, uma espécie de rumo obrigatório. Um chamamento, qualquer coisa como um apelo constrangedor na sua plena liberdade. A transcendência da sua vida ignorada, do seu nascimento anónimo, do seu crescimento discreto e do seu quotidiano inócuo. Onde nunca e até para sempre. O Teatro. A Arte. A Vida.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Texto quinquagésimo quinto

Porquê o teatro? Porque não lançar-me em escaladas de sucesso, converter-me à volúpia dos mil ecrãs luminosos manipuladores, janelas ambíguas que me descobrem o mundo e escondem o homem, desterros solitários em miragens de omnipresença?
Porquê o teatro? Porque não ceder ao consolo das obesidades fáceis, dos arrotos de fartura em mecanismos de aposta e lucro, ao invés deste desgaste de buscar um Belo que outros apreciem, desta consumição na insaciedade provocante?
Porquê o teatro? Porque não sumir-me na perna traçada de impávidas poltronas, calando o sopro inspirador que me empurra de dentro? Porque não fingir a rouquidão cinzenta inopinável, bronzeada e liquefeita, ao invés deste arrepio gritante, deste silêncio crispado ensurdecedor que sonha contagiar-se como hálito vivificante?
Porquê o teatro? Porque não respirar fundo na atenção repartida das multidões, dissipando a artilharia dos olhares curiosos nas quotidianas solidões acompanhadas? Porque não preservar o retrato anódino numa circunspeção aparentemente respeitosa, ao invés desta coragem de extinção no desnudamento, desta insanidade de abrir o corpo a todas as balas, disposto a qualquer aniquilamento de amor e crítica?
Porquê? Porquê um monólogo num palco de teatro? Porque não conservar-me o mais possível numa morte em que prolongadamente exista, ao invés de viver plenamente uma vida em que me morro a cada dia?
E porque não?... Se prefiro morrer-me numa vida desejada ao invés de apenas existir numa morte aceite…