domingo, 31 de maio de 2015

Texto quadragésimo terceiro

De repente, a surpresa. Um relance de olhos, o vislumbre da tua presença. A transcendência de ver-te na humana convicção da tua ausência. Uma aparição. Não te esperava, desejava-te na aparente intransponível distância. E, porque te desejava, vieste. Uma aparição.
Num repente, a beleza. No abalo de ver-te, a firmeza de me perceberes, a doçura da tua intenção plasmada no sorriso luminoso com que saudaste a perplexidade regalada do meu olhar. E o meu espanto entendeu logo a tua generosidade, tão de súbito como a tua ternura se deixou abraçar pela minha emoção. O belo é invisível, fulge na empatia oculta dos corações que se estreitam. O belo é indizível, grita silêncios de eternidade acima dos ruídos ocos da mera eloquência em que às vezes nos enganamos.
Num rompante, a certeza. Estamos juntos. Vieste porque estavas longe, vieste porque não estás longe. Chegaste num regresso do qual partes de novo, para me dizeres que ficas comigo nessa distância que eu entendo. É esta compreensão que nos estreita, porque, no teu desejo de proximidade de mim, é de ti próprio que não tens direito de afastar-te.
Surpresa, beleza e certeza. Na lonjura das distâncias medidas, há uma vizinhança de cumplicidade imensurável. De família. De amor.

domingo, 17 de maio de 2015

Sons de silêncio

Nova Iorque, Central Park, 19 de setembro de 1981. Sons de silêncio.

Um concerto de apenas música, conversa de letras cantadas pela presença dos intérpretes. Quando a arte se exprime na transparência das emoções, toda a parafernália de efeitos de luz, som, cor e movimento é um excesso que não faz diferença.

19 de setembro de 1981, Central Park, Nova Iorque. Sons de silêncio.

Noite mágica, 500 mil pessoas escutando o seu próprio silêncio nas duas vozes que o diziam, na metáfora que o gritava no íntimo. E continua.

Memorável, o evento. Profunda, a canção. Eterna, a mensagem.

Sons de silêncio. Aquilo de que precisamos.






domingo, 10 de maio de 2015

Décima segunda alegoria

Já não sei se é rima ou verso branco
O poema que eu construí
Com as folhas que vão deslizando
Sem destino, idade, hoje ou quando

Já não sei se é noite ou madrugada
Este sonho que eu descobri
Tão imenso, parece um deserto
Sem fronteiras, limite, longe ou perto

E o deserto
É um sorriso de criança
Onde ecoa o olhar da minha esperança

Já não sei se é sol ou lua nova
O sorriso que eu ensinei
Brando e leve como o trigo loiro
Mas tão rico, mais rico do que oiro

Já não sei se é sono ou despertar
A alegria que eu encontrei
Tão imensa, parece um deserto
Escaldante e de horizonte incerto

E o deserto
É um sorriso de criança
Onde ecoa o olhar da minha esperança

domingo, 3 de maio de 2015

Texto quadragésimo segundo

A primeira vez sem ti.
Um regresso aos lugares da infância, viagem de retorno ao sepulcro das memórias que não é possível exumar. A vida empurra-nos, o vento que nos sopra nas costas desloca-nos sem retorno, varre as pegadas da dor e do júbilo, bafeja-nos de uma resignação conformada ao vendaval das poeiras.
A primeira vez sem ti.
Há uma lonjura de álbum de recordações nas imagens que me chegam do passado contigo. Há uma injustiça nesta distância, uma abdicação nesta injustiça, um alívio nesta abdicação. E um remorso neste alívio.  
A primeira vez sem ti.
Os tempos vividos embalaram-se nos afetos navegados, amargaram nos desentendidos naufrágios, souberam a pouco nas ilusões ancoradas. Na nitidez do olhar à distância fica uma nostalgia triste do que poderia ter sido, a saudade enorme de um futuro impossível. A vida empurra-nos, o tempo e o espaço constrangem-nos, a memória denuncia-nos e a consciência condena-nos. Haverá um perdão que nos redima?...
Dia da Mãe. A primeira vez sem ti.