sábado, 26 de julho de 2014

Nona alegoria

Sentados à lareira
Nós os dois
A sós
Na melancolia das chamas
Desenhadas
No tiquetaque das palavras
Esboçadas
No veludo dos gestos
Cobiçados
No outono das lembranças
Inventadas
Sentimos
De olhos fechados
Corpo esquecido
Alma aberta
O cristal de uma afeição
Desejada

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Conversando... sobre um Grammy

Não há palavras bastantes para dizer o discurso inicial do contrabaixo, o veludo das frases que depois se transforma numa cadência de sobressaltos sensíveis, quase silábicos.

Não há sentimento bastante para vibrar com a reverência humilde do cantor que, em dois minutos de silêncio expectante, se prepara para construir um momento artístico sublime.

Não há virtude para admirar a coragem da voz que ousa lançar-se num diálogo sem rede com um instrumento que a expõe enquanto a acompanha, que a desnuda ao mesmo tempo que a envolve.

Uma canção belíssima, na letra e na música, aqui elevada mais acima numa interpretação transcendente. Um enorme contrabaixo! Uma voz maior!

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Texto vigésimo sétimo

Adolescência. As férias eram passadas na cidade. Na solidão passeada nas ruas. No olhar desenrolado em volta, preso por dentro num silêncio curioso e derramado sobre as monotonias de asfalto e calçada, o prumo dos edifícios, a fluidez da gente. Ou nas quatro paredes do quarto, a meditação claustrofóbica alternando com os gritos mudos desenhados, o mergulho a pique na leitura intercalado com as braçadas vigorosas da escrita incipiente.
Adolescência. As férias eram isolamento, descoberta de si, procura interrogada, esboços de resposta, reticências. O excesso de solidão tornou-o incompreendido, ao mesmo tempo que gerou nele uma perceção maior de tudo. A quietude debruçada divorciou-o de uma realidade de ocupação e conquista, segregou-o para uma nuvem de afastamento e dádiva. O mundo dos outros vibrava-lhe dentro numa espécie de infrassons de comoção e delírio.
Adolescência. Todos o julgavam insensível e vazio, enquanto ele crescia para albergar em si toda a realidade que observava, para inventar uma utopia que lhe superasse o desgosto do que via. Desconstruía na mente e reconstruía no sonho.
Um dia parou de crescer. Maturidade. Teve de enfrentar a vida fora de si. Revestiu-se de uma roupagem de relações, decidiu tornar-se alegre e comunicativo. Todos, à sua volta, saudaram a sua sensibilidade adquirida, a sua riqueza interior revelada. O companheiro que se ganhara.
Só ele teve noção do que se perdera. Só ele soube.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Conversando... sobre Sophia

Um texto avassalador, alicerçado na lenda da promessa verbalizada pelo Duque de Gandia (Francisco de Borja, futuro jesuíta canonizado) ao contemplar o cadáver já decomposto da imperatriz de Espanha (Isabel, filha do rei de Portugal D. Manuel I), por quem se apaixonara.

Na lamentação do Duque feita poesia pelo génio de Sophia de Mello Breyner Andresen, é possível ler - e ouvir, nesta belíssima interpretação de Rita Loureiro - a amargura de um povo de esperanças decompostas, a desilusão coletiva desenhada na dicção perfeita das palavras duras, um véu de descrença lançado pelo olhar que traduz, na sua profunda inexpressividade, a crispação do poema.

Mas a ruína do que nos é querido pode provocar a sublimação da vontade de querer, a visão da decadência do corpo pode gerar a explosão de tudo o que é espírito (e de que o próprio corpo faz parte). Ressurreição para uma vida outra, necessariamente outra, não dominada por valores perecíveis que iludem e matam.

Liberdade.

Obrigado, Sophia!