terça-feira, 26 de novembro de 2013

Texto décimo oitavo

Noventa e Três é tido como o último romance de Victor Hugo. Publicado em 1874, é uma lição de escrita de um romance histórico. O magistral retrato da França revolucionária não pode deixar de nos envolver: o fervor republicano sobreposto ao ideal monárquico taciturno, o Terror revolucionário, gerado nas entranhas do povo, de armas em riste contra a resistência aristocrática orquestrada do exterior.
A revolta da Vendeia é o pano de fundo sobre o qual Victor Hugo deixa correr a história do marquês de Lantenac, nobre condutor dos camponeses dispostos a morrer por uma monarquia que os reduz à miséria, e do seu sobrinho-neto Gauvain, o idealista revolucionário disposto a chacinar a população em nome da liberdade que pretende oferecer-lhe. À volta da intriga, tão intervenientes como espetadores, surgem as personagens históricas do período da Convenção, das quais inevitavelmente se destacam Marat, Danton e Robespierre, a páginas tantas protagonistas de um diálogo verdadeiramente sublime.
Mas o melhor da obra está guardado para o fim: o Livro Sexto e o Livro Sétimo da Terceira Parte constituem um hino à dignidade humana de que ninguém menos que o maior vulto da literatura seria capaz. É preciso ler aquelas páginas para (re)descobrir o valor intrínseco e profundo do ser humano, para entender que as opções radicais da honra elevam o homem bem acima das desprezíveis manobras de sobrevivência a todo o custo. É preciso devorar aquela escrita e fechar enfim o livro para acender a cínica lanterna de Diógenes e recomeçar, neste cinzento nevoeiro de relativismo moral dos nossos tempos, a busca do Homem nos rostos dos pigmeus que até de si próprios se escondem.
Noventa e Três é tido como o último romance de Victor Hugo. Publicado em 1874, é uma lição de escrita de um romance histórico. É uma lição de escrita de um romance. É uma lição de escrita. É uma lição. É. 

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Conversando...

Aqui fica, a todos os amigos e seguidores deste blogue, o convite para estarem presentes no próximo sábado, às 19.15 horas, na Biblioteca Municipal Palácio Galveias, em Lisboa.
Para além de podermos conversar sobre o livro Nós, Vida, será uma oportunidade para um contacto pessoal que muito apreciarei.


terça-feira, 12 de novembro de 2013

Quinta alegoria

Vocês não sabem a vida
Como eu já sonhei a morte
Nunca antes de a ver perdida
Senti a vida tão forte

Vivi silêncios de monge
Morei fundo no deserto
Mas tudo me era tão longe
Quanto eu julgava estar perto

Peregrinei monte e rio
Incensei longes anseios
Mas acabei no vazio
Dos gestos outrora cheios

E já chorando na estrada
Abraçado ao pranto mudo
Ergui os olhos do nada
E contemplei-te, meu tudo

Vocês não sabem a vida
Como eu já provei a morte
Mas foi por vê-la perdida
Que sinto a vida tão forte!

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Ficção VII - Começou a escrever

Estava só. Olhou em volta, ao redor das quatro paredes, e sentiu o olhar doer-lhe como um choro na noite. Foi à janela, derramou o olhar, quis ver mais longe, encontrar um pouco fora o que dentro lhe sobrava. Mas foi em vão, porque percebeu que não podia pedir ao deserto que se metamorfoseasse em bosque frondoso. Não porque o não fosse, mas apenas porque ele não conseguia vê-lo.
            Fechou os olhos, mas as imagens dele próprio demais continuavam a bailar-lhe dentro como borboletas sinistras. E pouco importava se lhe evocavam o mundo real cujas observações ele colecionava, ou se eram mesmo o reflexo e o prolongamento desse mundo. A verdade é que, dentro dele, existiam muito mais, com muito maior intensidade e era aí que lhe doíam. E era assim que se tornavam uma verdade que não existia lá fora.
            Abriu de novo os olhos, mas já não derramou o olhar. Correu as cortinas, virou as costas ao bosque frondoso que não conseguia ver e recolheu-se, mergulhou no deserto de si próprio em busca de um qualquer oásis de estar ali, que não conhecia. Deitou-se, cerrou o olhar sem se dar conta de ter baixado as pálpebras. Quis dormir, mas o pavor dos pesadelos de ontem retinha-o num lugar de vigília que o martirizava de lembranças. Resignou-se a sonhar acordado, que era o seu irremediável destino. Desejou ser simples, amaldiçoou a sua natural inata complexidade, ou a consciência dela, que é a mesma coisa. Invejou os pobres de espírito, os néscios e os ignorantes, que dormem tranquilos noite após noite, sem culpa nenhuma. Detestou-se por se sentir condenado por todas as vicissitudes que o atropelavam e de que só ele era culpado, porque as percebia.
Sentiu a luta dentro de si, envolveu-se nela um pouco, mais uma vez. Por fim, respirou fundo… e desistiu. Viver é difícil demais, quando se tem tanta vida dentro. Registou mentalmente aquele dia em que abdicava de si próprio, em que renunciava ao seu deserto como se enfim reconhecesse a impossibilidade do oásis, em que assumia viver apenas nos outros. A data da sua morte.
E começou a escrever.