sexta-feira, 30 de maio de 2014

Texto vigésimo sexto

Quando eu morrer
Jovem na força da vida
ou velho a decair
Não quero que me chorem
e não corem
se tiverem vontade de rir
Não quero que ponham luto
ou espalhem cinza no coração
da canção
E lá, no alto do cerro,
não calem o puto
que gargalhar no enterro
do desterro.

Que eu quero ser enterrado
ao lado
dos altos montes que demandei
Para depois olhar de cima
a  cruz-razão da minha rima
do lugar que saberei.

Quando eu morrer
saibam  que morri
e lembrem-se de mim.

E, enquanto eu viver,
Sorriam-me, odeiem-me
cuspam-me em cima
Elevem-me e apeiem-me
do pedestal da estima
Mas não me entreguem à noite esquecida
não me abandonem à minha sorte
Que eu quero viver para além da morte
Não quero morrer em vida.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Conversando... sobre uma estreia

Há textos assim: desvendam-se profundamente na clareza com que nos desvendam; dizem-nos brutalmente na nudez em que se dizem.
Há escritores assim: escondem-se na frágil gaiola dourada das palavras robustas que tecem; revelam-se nessa urdidura inocente e necessária. Inocente porque necessária. E expõem-nos, escancaram-nos impiedosamente naquilo que escondemos, no modo como o escondemos.
Cassiopeia, a nova peça escrita por Miguel Graça, a cuja estreia tive o privilégio de assistir, é assim. Mas é muito mais. É uma encenação de Pedro Caeiro suficientemente corajosa para servir o texto sem nunca ceder à tentação mesquinha de servir-se dele, num arrojo minimalista de que resulta uma plenitude esmagadora. É um trabalho dos atores (David Esteves, Joana Ribeiro Santos e Vítor Silva Costa) que se alimenta da escrita a que se entrega, numa generosidade sacrificial, num ritual de talento e suor.
O resultado de tudo isto é uma obra de arte de uma consistência dolorosa e libertadora. Pelo menos, foi assim que eu a vi.

A não perder. Só até domingo. No Teatro Taborda.


sábado, 3 de maio de 2014

Almada Negreiros

Recordo-me de ter lido pela primeira vez este texto no enunciado de um teste, quando era aluno do 8º ano. Sobre ele tive de responder a questões de interpretação e gramática. Já não me lembro quais eram, nem o que escrevi a propósito delas. Mas o texto permaneceu na minha memória, inapagável na sua profundidade e beleza.
É isto, a literatura!

MÃE
Poema de Almada Negreiros

Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei.
Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue! verdadeiro, encarnado!
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!
  
Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
  
Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.
  
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão pela minha cabeça é tudo tão verdade!