domingo, 17 de março de 2019

Texto nonagésimo oitavo

O caminho estreito alcatroado entrava-lhe pelos olhos dentro na vastidão com que se lhe estendia pela frente. O menino largou a mão do avô e ficou estático na contemplação daquele rumo sinuoso. Havia um banco na berma, junto à valeta empedrada, um ornamento de ferros pintados de negro servindo de estrutura à simplicidade de duas pranchas vermelhas. O avô sentou-se, descansou a sabedoria que dele transbordava na paciência de observar o menino, sorriso resplandecente de olhar o inexorável destino que se lhe desenrolava diante.
O menino moveu a cabeça, rodou o olhar pelas árvores em volta: identificou os eucaliptos, conhecia-lhes a altura implacável, sabia-lhes a inconfundível curvatura das folhas derramadas pelo chão, atapetando a terra húmida, fundindo-se nela em harmonia perfumada. Os aromas… E havia também as bagas, graciosas e duras, que muitas vezes caíam no caminho onde ele se desabituara de pontapeá-las desde que o avô lhe ensinara que não se agride a natureza a que pertencemos.
Entre os eucaliptos rareavam pinheiros teimosos, vestígios da anterior vegetação dominante, segundo o avô contara. O menino achava-os mais bonitos do que os eucaliptos, o tronco mais castanho, a ramagem mais frondosa, a caruma mais verde. E as pinhas, fantásticas obras de arte que ele tantas vezes recolhia e levava para casa, onde certa vez o seu pai se lembrara de, escolhendo as mais perfeitas, pintá-las em tons de oiro e prata para adornarem a base da árvore de Natal.
Voltou a fixar o olhar no caminho à sua frente, mas os sentidos vagueavam-lhe agora pelos sons, o vento versejando por entre os ramos, o chilreio de pássaros diversos fornecendo rimas àquele universo poético. Concentrou todo o seu tato nas plantas dos pés, sentiu a terra subir-lhe pelo corpo, crescer por ele e possuí-lo em todo um hino da criação.
Parecendo distraído, o avô eternizou-se em breves segundos de contemplação, grato pelo imenso mundo interior que transparecia no menino, pelo universo de sensibilidade que o habitava. Depois levantou-se devagar, aproximou-se. O menino olhou-o com aquela veneração inocente que sempre lhe escorria dos olhos. O avô passou-lhe a mão pela cabeça, numa carícia deslumbrada. E disse:
— Hás de escrever isto, um dia.
Tomou-o pela mão e continuaram o passeio pela mata.