domingo, 11 de novembro de 2018

Texto nonagésimo quinto


Vou voltar para casa!
Há dois anos que conto os dias que me arrancaram às leivas serranas e me arrastaram para Tancos, onde um apregoado «milagre» treinou as minhas mãos afeitas à sachola para as engatilhar na luisinha que os bifes me entregaram quando aqui desembarquei. Depois arrastaram-me por estas Franças adentro, mai-los meus camaradas, até nos porem a cavar as trincheiras onde nos emparedaram, a morte zumbida em tiros sobre as nossas cabeças igual à que rastejava aos nossos pés, nos ratos esfaimados que nos roíam a sola gasta das botas encharcadas, t’arrenego! Só mais rápida, por isso muitos dos nossos preferiram rasgar fardas e pele no arame farpado e aventurar-se pelo campo aberto, onde haviam de acabar tombados de um susto na lama da terra de ninguém, a mesma da vala imunda onde definhávamos lentos, à míngua de comida, calor e carinho dos nossos.
Sulcos na terra só antes conhecia os do meu arado, onde a gente botava a semente que havia de morrer para as nossas vidas. Mas aprendi nas trincheiras que há covas abertas como valas comuns a perder de vista, onde somos semeados para uma morte que não aproveita a ninguém. De um lado e de outro, é indiferente, pois é pelo fruto que se conhece a árvore e pela planta que se avalia a semente e nada resta para ver quando acabamos todos mastigados pela mesma terra, retalhada por obuses que a ensurdecem para a diferença das línguas.
Posso falar disto agora porque vou voltar para casa. O pesadelo acabou e os senhores da guerra decidiram a paz. Os dois lados encontraram-se, não a surdir das valas de armas na mão a cuspir morte, mas entrando para uma carruagem de comboio empunhando canetas para se comprometerem por escrito. Há quem diga que a razão de ser num comboio foi para manter a localização secreta, outros afirmam que foi para que todos se sentissem em terreno neutro, como a terra de ninguém onde se misturam cadáveres de todas as fardas. Os senhores da guerra decidiram a paz, mas eu, humilde português desconfiado, interrogo-me sobre a seriedade de tal decisão. Estaria o comboio parado na hora de firmar a escrita das convicções? Ou terão as sacudidelas do vagão feito as assinaturas tremer de falsas? E a tinta permanente que pingou dos aparos titulares, não virá a ser apagada no futuro pela malícia dos herdeiros?
Não me importa isso agora, que vou voltar para casa. O pesadelo acabou e eu sobrevivi, muito graças às curvas da sorte e à bênção de Deus, um pouco também à minha desajeitada perícia de camponês a imitar soldado, bem haja eu. Se calhar foi tudo obra da Senhora vestida de luz que apareceu lá pelas serras do meu torrão e cuja proteção todos os meus esfolaram os joelhos a suplicar. A todos agradeço e o que mais quero é regressar, sentar-me à lareira e aquecer os pés até queimar neles a lembrança da lama das trincheiras, roer a boa da côdea caseira que me faça esquecer os enlatados com cheiro de fábrica. E depois coser os dedos à sachola até despegar deles os tiques de ceifar vidas que a luisinha me ensinou.
Vou voltar para casa e quero apagar de mim estes dois anos de vida que a guerra me tirou na morte a que me fez convidado. Bem tive que me esforçar para não aceitar o convite, cáspite!...
Vou voltar para casa e limpar a memória. Mas a data de hoje, 11 de novembro, essa nunca hei de esquecê-la. Nem daqui a cem anos!...

domingo, 4 de novembro de 2018

Texto nonagésimo quarto



Terá sido a música, melodia singela orquestrada de simplicidade, que me envolveu num veludo harmónico? Ou terá sido a letra, uma ousadia de palavras a acender fachos de profecia nos meus vinte anos deslumbrados? Ou talvez fosse apenas a mulher, sentada ao piano e numa solidão desafiadora, as mãos espalhando energia criativa pelas teclas, o olhar gritando a tanta gente o silêncio que a sua voz entoava docemente.
Naquela noite de festival, em 1984, ouvir Silêncio e Tanta Gente foi para mim uma experiência indizível, um abraço musical aconchegante e desbravador, como esfregar a lâmpada de Aladino e ver sair o génio poderoso e sensível da Arte plena. Imensa no seu minimalismo, eterna no seu tempo medido.
Inesquecível e imortal, a canção. Inesquecível e imortal a sua criadora. Obrigado, Maria Guinot: por ser e por ter existido!