sábado, 29 de novembro de 2014

Texto trigésimo terceiro

Desde sempre, o fascínio. Terror e piedade.
A tragédia grega em toda a sua riqueza de mitos e valores, a vida contada em conquistas operadas por homens e destinos traçados por deuses. A provocação humana às forças que a transcendem, caminho cego por episódios de sinuosa escuridão. E a peripécia reveladora, o inevitável efeito. A catástrofe. E, por meio dela, a consciência de si, a descoberta da virtude. Terror e piedade. A catarse.
Desde sempre, o fascínio. E a interrogação, também. A força avassaladora, a pura imortalidade deste modelo primordial do teatro questionam todas as demais experiências históricas de dramaturgia onde, afinal, ela permaneceu. Na estrutura, na forma ou no tema. Terror e piedade. A catarse.
Desde sempre, o fascínio. E a interrogação, também. E o desafio, depois. A vontade de limpar a escrita teatral para chegar à essência de onde ela nasceu: a vida contada em conquistas operadas por homens e destinos traçados por deuses. Ainda que, no tema, a mitologia clássica, ventre que gerou a cultura europeia que (ainda) falamos, possa dar lugar à teologia judaico-cristã, tutora que a educou e que (ainda) a influencia. Terror e piedade. A catarse?
Desde sempre, o fascínio. E a interrogação, também. E o desafio, depois. E a tentativa, agora: O Poder e o Desejo. Um exercício trágico. Terror e piedade.
E a catarse?...

sábado, 15 de novembro de 2014

Texto trigésimo segundo

Escrever.
Escrever como Penélope: urdir uma infindável teia de sonhos, infindável porque de sonhos. Escrever ao contrário de Penélope: tecer no escuro da noite, encher o balão na densidade dos silêncios, rezando para que o espigão dos dias ruidosos retraia o seu furor e se compadeça da película ténue que envolve a fragilidade gasosa (espiritual?...) da criação.
E escrever, escrever sempre. A propósito e sem ele, nas horas disponíveis e nos intervalos do tempo que não há, nas intermitências de tudo e nas permanências de nada, a caneta ou a lápis, nos suportes próprios e impróprios, nos cadernos de qualquer outra coisa, nos versos dos talões do multibanco e nas frentes também, quando a impressão está sumida, no bloco de notas do computador portátil quase sem bateria e no rascunho de mensagens do telemóvel. E na memória, cada vez mais débil, onde a frase pensada e armazenada será mais tarde recuperada numa forma diferente.
Escrever como Penélope: entreter uma obra visível imperfeita à espera de um rei invisível, perfeito na minha ideia dele, que teima na demora de mostrar-se.
Escrever. Porque o ímpeto é irreprimível, porque a vontade dói de uma maneira insuportável. Escrever sempre. Porque outra coisa é impensável.

sábado, 8 de novembro de 2014

Acordai

Eram tempos em que crescíamos em estatura, inteligência e vontade. Eram tempos em que a coragem se armazenava dentro de nós como um perfume de essência poderosa. Eram tempos em que transportávamos todos os sonhos do mundo num relicário que nos cabia no peito. Não sabíamos o que viríamos a ser, mas acreditávamos que poderíamos ser tudo o que quiséssemos.

Depois, veio o conformismo, a sedução do conforto, um certo pragmatismo resignado que se estendeu como uma manta de realismo falso sobre a indómita ousadia de outrora.

Esta canção verdadeiramente heróica era cantada por nós nesses tempos, no coro da Escola Secundária. Com ela, e com muitas outras, aprendi o poder da palavra, a força da música, a urgência da arte. E a necessidade absoluta de continuar.

Acordemos!

domingo, 2 de novembro de 2014

Texto trigésimo primeiro

Morrer é partir um pouco.
Foste-te embora num adeus anunciado, demorado numa dor arrastada insuportável, numa súplica muda lancinante. Querias ficar, eu sei: na tua vida toda de queixumes havia um medo mascarado, uma angústia de perda no infinito rosário das tuas confissões magoadas, uma saudade antecipada nas tuas recorrentes invocações de fim. Uma nostalgia assustada na pressa. Um exorcismo.
Viveste sonhando que vivias, sonhaste que vivias sonhando. Entre a ocasião e a impossibilidade, foste um querer-ser. Exististe à espera de uma consumação da qual fugias.
E morreste. Partiste com tudo o que me fica de ti, permaneces em tudo o que levas de mim. Há uma aproximação irreprimível neste afastamento definitivo de ti que revoga a intransponível distância que sempre cavámos entre nós, um abraço de morte que tritura duas vidas de costas voltadas. Ou que as recompõe. Um exorcismo?...
Morrer é partir um pouco. E ficar muito mais. Porque só morrerás definitivamente neste mundo quando eu deixar de chamar por ti.
- Mãe!...