domingo, 25 de setembro de 2016

Conversando... sobre um concerto: Projecto Geo no Palácio da Ajuda



A sala cheia. Uma cúpula pintada a fresco num trompe l’oeil colorido deu guarida à  multidão acumulada em entrada livre, oriunda de uma liberdade variada e simples, também ela colorida na diversidade de expressões e atitudes. Parecia não haver espaço naquele ovo barroco engalanado de genuína expectativa.
E, de repente, a música. Uma explosão de sons, a linguagem do universo declamada por instrumentos do mundo, as sonoridades espalhadas no ar, os ecos à solta pelo íntimo de cada um dos ouvintes. Harmonia e êxtase. 
E houve mais. Houve palavra e dança, a voz e os corpos vogando nas ondas daquele instrumental vertiginoso. Tão belos se disseram os corpos, ao som da música! Tão alto se elevaram as almas nos corpos que tão belos se disseram!
A sala cheia. Harmonia e êxtase. Um concerto que nos moveu por dentro como uma erosão de fundo do mar. Que nos embalou, que nos arrancou de nós para a transcendência e nos repôs mais cheios. E agradecidos. 
A sala cheia. Harmonia e êxtase. Foi um concerto do PROJECTO GEO.
Eu estive lá!

domingo, 18 de setembro de 2016

Texto sexagésimo nono

Apresentar um livro. Coisa diferente de apresentar-se num livro. Falar de si a propósito do que se escreveu é ato bem distinto de falar de si naquilo que se escreveu. É desvelar um mistério, revelar um segredo e de certo modo perdê-lo por isso, ganhar um aplauso no sacrifício do sigilo aconchegante. É trocar a brasa pela labareda. É uma obscenidade vertiginosa e inevitável neste mundo arquitetado na imagem, avassalado na visibilidade e na mediação. O escritor vive no recato, mas não sobreviverá nele, por isso resigna-se a alternar-se entre a clausura e o alarde. Entre o engavetamento libertador da escrita e a tirânica necessidade de anunciá-la, o escritor fecha os olhos e suspira, na nostalgia de um tempo/espaço primordial em que compor um texto era apenas brincar no quarto da infância, recolher o mundo inteiro e reinventá-lo à porta fechada, alheio às gritarias lá de fora. Só porque sim.
O escritor diz-se no que escreve, porventura sente-se desdizer a escrita ao ver-se constrangido a falar dela. Mas tem de. E gosta.

domingo, 11 de setembro de 2016

Texto sexagésimo oitavo

Há uma inteligência poética: um olhar colorido e diferente, a perceção da realidade como uma floresta de símbolos.
Há uma crença que nos mina por dentro: a formulação de um sentido para a existência ou a descoberta dele, uma noção de sobrevivência e destino. Uma utopia, necessariamente, que nos permite navegar num mundo que não encaixa.
Há uma vontade de gritar por escrito: um amor ao desenho das palavras e à sua alma, um embalo quente no eco da sua conjugação, que nos consolida em tudo o que nos desmorona. A impossibilidade de não derramar em texto essa energia inteira que nos habita.
Há um desejo de ser lido: o reconhecimento de uma incompletude, a certeza de que só nos completamos naquilo em que nos prolongamos nos outros, os leitores, que se acrescentam daquilo que bebem de nós.
Há uma necessidade de intervir: um punho fechado erguido em discurso na luta pela transformação do mundo a partir do homem, dos factos a partir da mente, das ideias a partir do coração.
Há um escritor. E a escrita à espera de.

domingo, 4 de setembro de 2016

Texto sexagésimo sétimo

«O fruto do silêncio é a oração. O fruto da oração é a fé. O fruto da fé é o amor. O fruto do amor é o serviço. O fruto do serviço é a paz».
Faço silêncio, calo os gritos interiores que me dispersam. Viro-me para dentro, ato a venda nos olhos que me descola a cegueira, mergulho na quietude que me encontra em mim.
O fruto do silêncio é a oração. Elevo-me nesta profundeza em que submerjo. Transcendo-me num face a face com o divino que em mim habita fora de mim. Percebo-me na alma de mãos postas, vejo-me a mim próprio mais do que eu mesmo. Vejo-me outro, o Outro em mim.
O fruto da oração é a fé. Acolho a Presença que me enche, aceito o Nome que me desvenda. Confesso-me crente no Ser que me justifica e resolve, a plenitude que me transborda, que me faz inteiro em mim e parte de um Todo além de mim. Que me dá sentido.
O fruto da fé é o amor. Vejo o sentido como um desafio que me projeta, uma expansão, a mão estendida num desejo de abraço rumo ao clamor de mil olhares sedentos. Um impulso que vem de dentro mas nasce fora, porque o Todo feito das partes grita na parte que se quer para o Todo.
O fruto do amor é o serviço. Largo a correr ao encontro, semeio um trilho de brasas que me fere os pés, não me deixa parar em mim. Pulverizo-me em gestos desde este núcleo de transcendência que me unifica. Centrado no Outro em mim, descentro-me para o Eu de cada outro.
O fruto do serviço é a paz. Encho-me nesta troca que me esvazia de tudo o que sou, foco-me nela como única verdade que me salva. Porque sou feito do que busco no outro, entrego-lhe o que me falta para ser mais eu. E sinto a tranquilidade expandir-se à minha volta. Alheio ao ruído, surdo aos gritos interiores que me dispersam, repouso no aconchego da dádiva, no sorriso da partilha. Na respiração profunda quieta da missão cumprida. No silêncio. 
O fruto da paz é o silêncio. E tudo recomeça.