segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Vigésima segunda alegoria


Silêncio equilíbrio
das palavras funâmbulo
sem máscara transparente
no olhar direto
nos passos sinceros
os gestos sem medida
no dom profundo
em tudo

Silêncio grito
da existência livre
de mentiras esquecido
de medos transcendido
por tudo.

Silêncio útero
divino alicerce
de dentro opaco
na força indomável
no desejo equilíbrio
das palavras funâmbulo
transparente verdade
de tudo

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Texto nonagésimo primeiro


Estou aqui. A minha História pesa nas pedras banhadas de luz, erguidas ao calor do tempo presente. E há um grito surdo, dir-se-ia um protesto em cantochão na vizinha necrópole rusticada. Como se eu próprio, naquele único testemunho calado da primitiva construção, me revoltasse perante a memória atraiçoada nos inevitáveis restauros.
Por dentro, desbravando dilemas entre o visigótico e o moçárabe, estremeço de emoção na lembrança dos milhares (milhões?) de fiéis, eu próprio anterior a mim, pés que pisaram o mesmo chão, corpos curvados sob os mesmos arcos, mãos erguidas na busca da mesma luz, almas rasgadas em aflições não diferentes das que hoje ainda ecoam na mudez das pedras vivas. As minhas. 
Faço caminho para aqui chegar. Estou em caminho desde aqui. Sou o homem cristão ibérico à procura de mim, à procura do Outro em mim. Sou a humanidade: erguida como as pedras sobrepostas, finita como os corpos enterrados, imparável como o tempo. E deixo a minha marca nestes resíduos de História. Estou aqui.

domingo, 12 de agosto de 2018

Texto nonagésimo


Ocupam tudo. Germinam sonhos nas palavras que escondem como larvas, revelam o seu mistério em invólucros sagrados como cálices. Ocupam tudo. Estendem-se pelas prateleiras como ondas de maré cheia, abraçam-me a vida como trepadeiras, devoram-me a existência como feras predadoras. Ocupam tudo.
São os livros. Forram-me as estantes, preenchem-me a vida. Conquistam todo o espaço numa implacável presúria, transcendem-me o espírito numa fartura insaciada. E ficam-me dentro, depois e para sempre, numa plenitude transfiguradora e indizível. São os livros.
Quando entram em mim, não mais poderão sair. Nem eu deles, a comunhão é transubstanciadora e perene. Por isso a separação física é irrelevante. Necessária, às vezes, porventura urgente: como não alargar para outros a graça inefável que sobre mim desceu, gestos de bênção a cada virar de página?
Gosto de dar livros. Gosto de dar os livros que me fui dando e que tanto me deram de mim mesmo. Não são os meus bens que partilho; é o meu próprio ser que reparto, a minha história que alargo numa expansão significativa. E transformadora, porque as páginas em que me li irão escrever-se noutras vidas mais e mais. Até ao infinito.
São os livros. Ocupam tudo.