domingo, 24 de fevereiro de 2019

Texto nonagésimo sétimo


Escrito há vinte e muitos anos para uma peça de teatro musical de que fui autor e encenador (e intérprete, também…). Exprimindo esse embrulho de contradições e buscas que sempre me foi casulo, revela uma infância poética que me acorrentava à rima e só me autorizava a fugir da métrica para ir em busca do ritmo da música, essa outra métrica mais forte.
Com as evidentes ingenuidades, é um testemunho do meu percurso literário que me apraz partilhar…

Trago a vida sem fiel nem prumo
Perco-me por noites de dilema
Às vezes queria ter um rumo
E fazer da vida um poema

Mas ergo castelos de amargura
Trago a solidão por diadema
Só queria ter uma alma pura
E fazer da vida um poema

É o poema da vida
Tão enrouquecida que eu quero cantar
É no poema da vida
Quem sabe perdida que eu quero encontrar
O apoio, o apoio
Que me anime a caminhar
E me ensine a separar
O trigo do joio.


domingo, 10 de fevereiro de 2019

Dizer a imagem 16 - Afinal?...



Já me fui embora das roupas que me tornavam visível. Há um abandono de pregas desordenadas, uma inutilidade de biqueiras alinhadas, um vazio. Histórias incompletas de uma vida que acabou. Uma ausência, um desejo de mais, uma saudade. O que resta de nós quando nos vamos sem aviso? O que fica no aviso com que premeditamos uma inevitável partida?
Já me fui embora das roupas que me tornavam visível. Há um luto que alastra como enchente poluída, todas as cores se diluem num desgosto negro sem voz, a própria luz de tudo parece sufocar no tenebrismo opaco de nada mais.
Já me fui embora das roupas que me tornavam visível. Mas as memórias todas chovem teimosas, ensopam a secura das vestes na humidade dos passados que ainda, as tábuas do soalho absorvem a muda transparência do meu corpo que já não. Pleno é o meu nome na boca de todas as lembranças, a interpelação luminosa que inunda o oco negrume da ausência, a ânsia de ficar.  
Já me fui embora das roupas que me tornavam visível, grito-me em tudo o que resta na ânsia de ficar. Entre a brevidade e o eterno, permaneço afinal?

(Fotografia de Jorge Figueiredo)

domingo, 3 de fevereiro de 2019

Ficção XXIV - À espera de ti

Todos os dias entro neste café, sento-me à mesma mesa e fico à espera. De te ver entrar como naquele dia, empurrada para dentro pela chuva torrencial e súbita, desígnio tempestuoso que te trouxe a mim. Chegaste num rasgo de fuga ao dilúvio, cambaleaste numa acrobacia inibida perante o fogo cruzado de todos os olhares do espaço repleto, encostaste-te à única cadeira vazia naquele antro de refugiados da intempérie. Diante de mim, na mesa onde eu estava.
E cruzámos olhares de cores diferentes, o meu queixume negro e desiludido chocou com a verdura fresca e esperançosa da juventude que irradiavas. Tacteámos palavras de saudação, experimentámo-nos numa conversa de circunstância, não quero incomodá-lo, não faz mal esse lugar está livre, desculpe estou encharcada, pois é a chuva veio de surpresa, ao menos aqui está calor, sim podes aquecer-te e esperar.
Despiste o casaco ensopado, eu aliviei insensivelmente o aperto do cachecol que enrolava ao pescoço como ridícula marca de intelectualidade literária. Assim nos fomos revelando numa conversa de chá quente, gostos de leitura e peripécias de viagens, histórias partilhadas numa progressiva infusão de intimidades.
Saíste quando o céu limpou o aguaceiro de março e se tingiu de um azul luzidio de primavera anunciada. Levantaste-te, vestiste o casaco já apenas húmido e saíste num jeito bailarino de pássaro livre, tudo lá fora chamava por ti. Observei-te impotente, a mesa diante de mim como mansarda romântica, o meu espírito livre projetado em ti, o meu corpo emparedado incapaz de seguir-te, tudo em mim pedia que ficasses. Gostei de conhecer-te, eu também gostei de conversar consigo, talvez nos reencontremos, talvez sim venho aqui de vez em quando, quem sabe noutro dia de chuva, quem sabe até num dia de sol.
Todos os dias entro neste café, sento-me à mesma mesa e fico. À espera de ti.