domingo, 3 de fevereiro de 2019

Ficção XXIV - À espera de ti

Todos os dias entro neste café, sento-me à mesma mesa e fico à espera. De te ver entrar como naquele dia, empurrada para dentro pela chuva torrencial e súbita, desígnio tempestuoso que te trouxe a mim. Chegaste num rasgo de fuga ao dilúvio, cambaleaste numa acrobacia inibida perante o fogo cruzado de todos os olhares do espaço repleto, encostaste-te à única cadeira vazia naquele antro de refugiados da intempérie. Diante de mim, na mesa onde eu estava.
E cruzámos olhares de cores diferentes, o meu queixume negro e desiludido chocou com a verdura fresca e esperançosa da juventude que irradiavas. Tacteámos palavras de saudação, experimentámo-nos numa conversa de circunstância, não quero incomodá-lo, não faz mal esse lugar está livre, desculpe estou encharcada, pois é a chuva veio de surpresa, ao menos aqui está calor, sim podes aquecer-te e esperar.
Despiste o casaco ensopado, eu aliviei insensivelmente o aperto do cachecol que enrolava ao pescoço como ridícula marca de intelectualidade literária. Assim nos fomos revelando numa conversa de chá quente, gostos de leitura e peripécias de viagens, histórias partilhadas numa progressiva infusão de intimidades.
Saíste quando o céu limpou o aguaceiro de março e se tingiu de um azul luzidio de primavera anunciada. Levantaste-te, vestiste o casaco já apenas húmido e saíste num jeito bailarino de pássaro livre, tudo lá fora chamava por ti. Observei-te impotente, a mesa diante de mim como mansarda romântica, o meu espírito livre projetado em ti, o meu corpo emparedado incapaz de seguir-te, tudo em mim pedia que ficasses. Gostei de conhecer-te, eu também gostei de conversar consigo, talvez nos reencontremos, talvez sim venho aqui de vez em quando, quem sabe noutro dia de chuva, quem sabe até num dia de sol.
Todos os dias entro neste café, sento-me à mesma mesa e fico. À espera de ti.

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