quarta-feira, 22 de março de 2017

Texto setuagésimo nono


Regressar ao palco. Entrar, fincar os pés na arena, erguer-me do meu chão, pisar as nuvens, explodir-me em presença. Descontrair o corpo, concentrar o espírito. Libertar os deuses que me habitam, descobri-los sob as máscaras de mim. Perder-me.
 Regressar ao palco. Senti-lo dentro. Deixar o antigo inexplicável frenesim de quietude tomar conta de mim, outra vez. Concentrar o corpo, descontrair o espírito. Observar-me no olhar em volta, medir o espaço, fruir o tempo. Saborear a Palavra que se faz texto à minha vista, incorporar o texto que se faz Palavra no meu íntimo. Encontrar-me.
Regressar ao palco. Erguer de novo o gesto, abraçar o rito que me corre nas veias. Soltar enfim a Palavra, transcender a Vida. Ser outro em mim, fazer-me outros no que sou, ser eu próprio nos outros que em mim se fazem. Entregar-me.
Regressar ao palco. Partilhar. Celebrar a Vida que criamos, que transborda de nós e nos une. Imaginar e ser maior. Criar mundos. Acrescentar-me.
Regressar ao palco. Fazer teatro. Salvar-me.

Fotografia de Carlos Alberto Cavaco, no ensaio de Canto do Cisne... ou Talvez Não.

domingo, 12 de março de 2017

Dizer a Imagem 13 - Libertação

No Teatro, a libertação.
Emparedado na colorida infinitude do palco negro, escapo de mim na liturgia dos gestos, no oráculo das palavras, na sacralidade da presença.
Qual flâmine paramentado de si próprio, presido ao rito em que me evado, elevo-me da roupagem constrangida da existência, onde tudo se restringe ao que se permite. E perco-me na transcendente nudez do símbolo, onde nada se limita no que se potencia.
Assisto em mim ao desprendimento dos fantasmas que me habitam, que mais e mais me preenchem nas personagens diversas em que fora de mim me expõem, em seus luminosos gritos de libertos.
O tempo suspende-se, o espaço desvanece-se, a vida expande-se. E não há liberdade maior.
Depois, por não saber evitar, regressarei à contingência, ao horizonte e ao calendário. Vestirei de novo a roupa engomada de estar algures e mirar-me-ei no espelho embaciado de quem devo ser. E continuarei, sonhando a próxima fuga.
No Teatro, a libertação.
O resto… é silêncio.

Fotografia de Carlos Alberto Cavaco, no ensaio de Canto do Cisne… ou Talvez Não.