sábado, 4 de julho de 2015

Bom Teatro

Não é preciso muito para fazer bom teatro. Basta que o pouco que se tem seja muito bom. RAPE – Estudo de um Ingénuo Amor é a prova disso mesmo.
O texto: há mentiras que nos fecham a ponto de nos tornarem prisioneiros da verdade que ocultamos; há obsessões que se abrem dentro de nós a ponto de criarem a única verdade pela qual conseguimos olhar o mundo. O autor, Andre Neely, esgrime estas duas armas com impressionante mestria, lançando-as na arena de uma história polémica. Ainda que possa ser algo previsível (pelo menos para quem partilha estes trilhos da escrita criativa), a peça é de uma incomodativa profundidade e de uma eloquência poderosa. Intensa. Como sabe bem ir ao teatro e deparar com um texto verdadeiramente bem escrito!...
A encenação: limpa e eficaz, revela uma leitura muito atenta e inteligente do texto. O espaço vazio das solidões (in)comunicantes, o frenesim das obsessões e das fugas, a escuridão dos silêncios e das verdades escondidas. As distâncias. E a luz a conduzir-nos, a dirigir o nosso olhar, a manipular a nossa visão da realidade. Como a mentira. E a reter-nos ali, a sufocar em nós a vontade de partir. Como a obsessão. O encenador, Leonardo Garibaldi, servindo o texto, concebeu uma gaiola de criatividade, estruturou o espaço e o tempo de modo a prender os atores (e o público?) na liberdade de ação que lhes concede.
As interpretações: Rita Silvestre e Rui Westermann, dois jovens atores de quem tenho tido o privilégio de acompanhar a evolução, confirmam neste trabalho a sua maturidade. Ambos seguríssimos tecnicamente (corpo, voz e ritmo), é na expressão de sentimentos que o contraste se define: ele é contido o suficiente, ela é necessariamente avassaladora; ele refugia-se num logos comedido, ela explode num pathos desgovernado. Desarmado e omnisciente, ele; perdida e demolidora, ela. Rui espera, Rita supera: a isso os condenam as suas personagens.
O modo como tudo acontece delicia-nos até à dilaceração. Duvidamos cinicamente da mentira dele, demasiado sincera para não ser verdadeira; ao invés, acreditamos dolorosamente na obsessão dela, sofrida demais para não ser um engano. E assistimos, com o regozijo da nossa impotência, à destruição daqueles dois seres tão brilhantemente construída. Intrigados até ao êxtase com o mistério das personagens, fascinados até à dor com o trabalho dos atores, conseguiremos ver ali o espelho de nós próprios? Verdade do teatro, mentira das nossas vidas…
Não é preciso muito para fazer bom teatro. Basta que o pouco que se tem seja muito bom. RAPE – Estudo de um Ingénuo Amor é a prova disso mesmo: texto, encenação, interpretações. E uma produção competente, capaz de combinar tudo isto em doses certas para no-lo servir em forma de arte. De inquietação. Inquietarte.


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