domingo, 17 de abril de 2016

Texto sexagésimo segundo

Não consigo dizer se fosse eu. Talvez não conseguisse ser eu se fosse eu. Fugiria num repente, mochila às costas cheia de nada, ou vazia de tudo. Ou cheia de tudo o que é nada no vazio das palavras recostadas no conforto do que nunca experimentámos.
Não consigo pensar se fosse eu. Decerto não conseguiria ser eu se fosse eu. Fugiria num repente, soltaria o meu corpo na vertigem da sobrevivência, para salvar o que restasse da alma que ficaria para trás, inevitavelmente para trás no silêncio das coisas, no ruído das gentes, nas coisas das histórias das gentes, nas gentes dos lugares das coisas. Na vida inteira desabada que não cabe em nenhuma mochila às costas cheia de nada, ou vazia de tudo.
Não consigo imaginar se fosse eu. Já não seria eu se fosse eu. Fugiria num repente, desgarrado de mim, dilacerado e pulverizado, abandonado ao absurdo trânsito de resgate porque mais nada, porque o caminho entre os sonhos construídos que se deixam, desfeitos, e as fantasias desejadas que se buscam, quiméricas, é inconsistente e doloroso como um vácuo. Destruidor, mas é o único caminho. Nisso consiste o impensável horror: lançar-se na fornalha porque é preferível caminhar sobre brasas do que deixar-se submergir pela lava incandescente. E desejar as brasas e correr para elas, como se fosse diferente. Que importa o que nos enche a mochila, ou o que se diz sobre isso no vazio das palavras recostadas no conforto do que nunca imaginámos?
Nem consigo ser eu a pensar se fosse eu. Que seria de mim se fosse eu?...

Sem comentários:

Enviar um comentário