domingo, 3 de dezembro de 2017

Ficção XXI - Houve um tempo (a partir de «A Chave Perdida»)

Houve um tempo em que o mero som da voz dela me acordava todo por dentro, porque havia uma faísca em cada uma das suas palavras que era como uma ignição que me punha em brasa. Mas isso era antes de há quatro meses, quando ela estava naquilo que me dizia e havia verdade entre nós. Depois tudo se transformou e eu perdi a capacidade de me abrasar ao mesmo tempo que vi extinguir-se nela a chama que me incendiava. A nossa convivência tornou-se uma conversa de surdos, como se nos tivéssemos deixado submergir num qualquer óleo viscoso e esbracejássemos entorpecidos, gritando coisas que nos rebentam dentro e apenas nos saem da boca como bolhas informes que nada dizem. Nunca fui dotado para as letras, depois dos catorze anos nunca mais peguei num livro que não fosse de motores e peças, enriqueci o meu léxico com a prosa de oficina e as rimas da mecânica. Ela, como quase toda a gente, ouvia-me sempre de cima para baixo mas gostava de mim e entendia-me, empatizava comigo. Empatizar é uma palavra que aprendi com ela, como muitas outras que me ensinou à força de me corrigir e eu deixar, porque gostava dela tanto quanto ela gostava de mim. Ou mais. A Sónia ocupava-me todo o pensamento quando eu pensava em mim, era quase a minha identidade, metade da minha identidade. A outra metade.
— Olá.
A voz dela soou tão inerte como um tubo de escape desferrado. Deixei-a entrar, aproximar-se do sofá, sentir que eu sentia a presença dela junto de mim.
— Olá – levantei os olhos, não sei se a minha expressão era receio ou súplica. – O dia está cinzento.
Não estava a referir-me às condições atmosféricas e ela percebeu, mas olhou para a janela como se não, despejou o olhar para o bairro entardecido.
— Pois. Se calhar é porque começa hoje o outono. Também está mais fresco.
Aquela resposta não era a Sónia, era a Sónia desde há quatro meses, quando tinha deixado de ser a Sónia que eu amava.

(Fotografia de Jorge Figueiredo, no ensaio de A Chave Perdida)

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