domingo, 19 de novembro de 2017

Ficção XIX - Sou maestro (a partir de «A Chave Perdida»)


Sou maestro, fui-lhe dizendo no silêncio do meu olhar que falava só para mim próprio, o meu corpo agarra-se todo a estas mãos que desenham a música, a mente que a estuda derrama-se neste corpo que a limita. Cada vez que dirijo um concerto, preciso de todas as minhas energias concentradas e controladas. A orquestra é um menino dócil à minha frente, um animal amestrado, uma marioneta multiplicada, totalmente dependente do meu equilíbrio, do meu vigor acumulado, dos meus impulsos. Ou dos impulsos da arte em mim, entrega do barro que sou à modelação transcendente invisível. As mãos esboçam a música que lhes vai dentro, que me percorre o corpo e me explode na alma. E são os músicos que a libertam compasso a compasso, andamento a andamento, peça a peça, pela voz redentora dos instrumentos que lhes aprisionaram as vidas inteiras.
A música que o público ouve é uma paixão que sai de mim, disse-lhe ainda no grito calado que ela se habituou a seguir numa quietude de susto, que é arrancada ou sugada de mim para a orquestra e que os músicos transbordam com o talento de que são capazes. É uma sangria a que me entrego completamente, de cada vez como se fosse a última, em busca da verdade que só ali posso encontrar. Torcer o destino, a vida é um desencontro de dores em que não sou capaz de escolher a solução mais fácil.
Desencontro de dores. Calei o meu silêncio, não queria que a Rita conhecesse as páginas arrancadas do meu passado, saudades são fraquezas paralisantes. Houve uma infância aconchegada, a casa acolhedora como sombra de um telheiro no pino do verão, houve um pai chegado enquanto pôde sê-lo, uma mãe sorridente até se aferrolhar numa tristeza revoltada. Houve a tragédia. Dez anos de martírio. A Rita não sabia, nunca soube, não lhe pertenceria saber. Olhei o rosto dela, a sua expressão assustada e calei o meu silêncio, ou tentei, quis ficar quieto e não consegui, algo se descontrolou em mim, um arabesco do braço, um meneio do pescoço, o arrepio a trazer-me de volta as páginas arrancadas do passado que não queria. Um medo de que este sobressalto pudesse invadir-me durante a arte, as páginas arrancadas do passado poisando na estante sobre a partitura, manchando-me a criação, impedindo-me de torcer o destino. Felizmente nunca até agora, saudades são fraquezas paralisantes. 

(Fotografia de Carlos Alberto Cavaco)

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