domingo, 27 de novembro de 2016

Texto setuagésimo terceiro

Devia haver uma idade mínima, pensei. Olhei a sinistra caixa de madeira que te guardava, olhei-te para lá da cobertura dela, branca da tua pureza, consistente da tua grandeza inocente, acetinada da tua simplicidade intangível. Olhei-te num último abraço impossível. Devia haver uma idade mínima.
E deixei-me escorrer de mágoa e revolta por entre a multidão anónima que estava ali porque sim, porque não havia como não. Como eu. Cabeças pendentes de quem não acredita no que sabe, corações ao alto de quem sabe no que acredita, choros convulsivos de quem quer acreditar mas não sabe, corpos rígidos no choque de emoções de quem não sabe nem acredita. E aqueles que não sabem por que acreditam. E todos os outros. E eu.
Devia haver uma idade mínima, continuo a pensar. Aos doze anos ninguém viveu ainda o bastante. Ninguém se deu a conhecer ao mundo a ponto de ser lícito deixá-lo órfão de si. Por entre a multidão anónima, diante da sinistra caixa de madeira que te guardava, estremeci na busca de uma legitimidade maior que a sombria nuvem de injustiça e erro de tudo isto. Devia haver uma idade mínima, continuo a pensar.
Mas não. Não há requisito para chegar, nem fórmula para a duração da permanência ou para as condições dela, nem nomeação para a partida ou atestado que a impeça. Espreitando por entre os muros da lógica controladora que erguemos em volta da nossa existência, temos de abandonar-nos ao deserto do mistério que se estende para lá deles. E nos envolve na violência de tempestades de areia.
Que sabemos? Em que acreditamos? Escorrem-nos por entre os dedos, como finos grãos, as angústias, as revoltas e os medos. E as interrogações que não conseguimos formular. E os consolos a que tentamos agarrar-nos. Não há idade mínima para ninguém. Haverá uma idade certa para cada um? Não sei, apenas acredito. Porque sim, porque não há como não.

4 comentários:

  1. Devia haver uma idade mínima! Gostaria de saber dizê-lo de outra forma. Gostei de ler o que escreveste, ainda que sinta uma profunda tristeza por o teres feito!

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    1. A vida inteira é uma busca de sentido e toda a crença é um desafio às dúvidas e interrogações que transportamos. A existência prende-nos em tudo o que não compreendemos. Escrevi para me libertar, não pretendo entristecer ninguém... Espero que, nessa tristeza que sentes (que sentimos!...), se abram brechas de libertação. Não sei, apenas acredito. E espero!

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  2. Não há idade mínima certa quando as pessoas nos faltam como a vida. Há idades que nos doem mais por serem demasiado mínimas.

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    1. É verdade: é a vida no seu mistério. Queremos dominá-la, entendê-la na nossa lógica, prendê-la na nossa mão... mas tanto nos escapa!...
      Gritemos a dor na nossa escrita. É um modo de catarse. E de união que nos dá força.
      Obrigado!

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