domingo, 15 de março de 2015

Texto quadragésimo


Precisamos da provocação da arte, essa ferramenta espiritual de olhar todas as coisas de outra maneira. Que nos desarma, por isso nos fortalece. Fragiliza-nos no modo como nos desnuda ao encontro da nossa essência. Assusta-nos por isso. E fascina-nos.

Porém, fugimos da provocação da arte, da qual precisamos. O frémito quotidiano, mera luta de sobrevivência, inibe-nos. Debatemo-nos na ânsia de permanecer à tona e, assim, perdemos o gozo do mergulho existencial nos nossos medos, que afinal nos salvarão. Afligimo-nos mais nos desejos de alívio, deixamo-nos prender por objetos de pretensa libertação. Não sonhamos, iludidos por falsos ideais de vigilância. A superficialidade encobre a profundeza, o imediato mascara o eterno. A arte sobra nas urgências da vida, falta às angústias.

Entretanto, evadimo-nos (ou enganamo-nos de nos evadirmos): programamos fins-de-semana «diferentes», projetamos férias «exóticas», compensamo-nos por sonharmos paraísos proporcionais à nossa impossibilidade deles. São intenções de fuga já resignadas de regresso. Abrimos vagamente o postigo à utopia que nos habita, porém negamos-lhe o espaço para que verdadeiramente nos ocupe. E buscamos teimosamente respostas no nosso dia-a-dia atribulado, virando costas ao mistério pessoal que nos interroga e dá sentido por isso.

Mas existe a arte. As artes todas. A literatura também. E a religião, talvez. E o amor, sempre. As ferramentas do espírito (com a cumplicidade do corpo). Algo que confira à nossa vida um certo sentido de tragédia. De inexorabilidade que desafia. De decisão que urge. De constrangimento que nos leva à superação. De compromisso até ao martírio. De vida na própria morte. De salvação.

Precisamos.

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