sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Texto vigésimo nono

O externato que ele frequentou durante todo o primeiro ciclo (a escola primária, como então se chamava) situava-se a meio de uma pequena avenida da qual herdou o nome, uma via com dois sentidos de tráfego separados por placas centrais arborizadas.
Ao cimo da avenida havia um pequeno parque florestal, a “mata”, como todos lhe chamavam, implantada em homenagem a um pintor de referência do Naturalismo português, cujo busto se erguia a meio da rampa de entrada. Todos os dias, ou quase, ele olhava para o portão da mata, quando entrava ou quando saía do externato. Porém, o mundo que jazia para lá desse portão pouco ou nada significava para ele. Tomava consciência da vegetação frondosa daquele pulmão urbano de um modo distante e indiferente, na completa ignorância do valor que lhe daria anos mais tarde.
O caminho de casa para a escola não passava pela mata. Fazia-se por baixo, pela estrada com a qual a avenida confluía. Ou, será mais correto dizê-lo, da qual ela partia. No vértice do ângulo que as duas vias formavam, erguia-se a igreja paroquial, construção iniciada no século XVIII com materiais e homens desviados da obra do Palácio de Mafra, segundo diziam as más línguas. Contribuía para a lenda, não obstante a distância geográfica, o nome do arquiteto, o mesmo do Real Edifício, e a coincidência de datas dos projetos. A ser verdade, tal contrabando de pedra, estruturas e mão de obra não acelerou a construção, já que a empreitada de edificação da igreja paroquial se arrastou por longo tempo, só ficando concluída no início do século XIX, para ser dedicada ao culto em 1809.
Ele haveria de entrar muitas vezes na igreja, de muitas outras passaria diante dela como se lá entrasse e de outras ainda transportaria consigo a sensação de estar lá dentro para todas as distâncias que dela o afastassem. Porque aquela igreja tornar-se-ia uma referência absoluta na sua vida muito antes de ele o perceber e continuaria a sê-lo mesmo quando ele já não o percebesse.

Sem comentários:

Enviar um comentário