terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Texto vigésimo primeiro

A infância dele foi tingida de encarnado (porque era um tempo em que não se podia dizer «vermelho»). Do amplo terraço do oitavo andar onde morava podia ver-se, acima dos prédios e do gradeado das antenas de televisão, o terceiro anel incompleto do estádio a que sempre ouvira chamar «a catedral». Aos domingos à tarde, a Emissora Nacional ocupava a atmosfera da casa com o relato do jogo do «Glorioso», que era seguido com a emoção de uma causa maior do que a vida. E havia um nome pronunciado com solenidade heróica, mesmo quando se tratava apenas de uma evocação.
A infância dele foi tingida de encarnado (porque era um tempo em que não se podia dizer «vermelho»). O seu pai, com o honesto rigor que o caracterizava, recordava-lhe a epopeia das duas taças europeias conquistadas em anos sucessivos. E da terceira, perdida entre os ecos do hino comemorativo que já se ensaiava. E recordava também a batalha de Inglaterra, quatro anos depois, em que os portugueses, onde pontificavam vários homens do clube encarnado, mais uma vez assumiram a sina histórica de serem vencidos de cabeça erguida. E havia sempre um nome pronunciado com solenidade heróica.
A infância dele foi tingida de encarnado (porque era um tempo em que não se podia dizer «vermelho»). A transmissão televisiva era um acontecimento esporádico imperdível, uma exceção nos hábitos de frugalidade mediática do país ensimesmado, um luxo reservado para a intermitente ousadia europeia de uma meia final da Taça dos Campeões ou para a propaganda anual do Jamor, em dia de final da Taça de Portugal. Ainda mais rara foi a possibilidade de observar, no tímido preto e branco do cinescópio da Schaub-Lorenz, o homem a quem correspondia o nome sempre pronunciado com solenidade heróica. A força e tenacidade, a vontade inquebrantável, a eficiência demolidora. A simplicidade de modos, a absoluta despretensão, a alegria verdadeiramente desportiva. O prazer de fazer o que se gosta e o desejo indómito de continuar a fazê-lo.
A infância dele foi tingida de encarnado (porque era um tempo em que não se podia dizer «vermelho»). Encarnado: para ele, naquele tempo, era essa a cor do Pantera Negra. 

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