domingo, 20 de janeiro de 2019

Texto nonagésimo sexto

Sou da escrita. Desde sempre, sou da escrita. Desde o vagido retardado de um nascimento moroso, desde a muda timidez do olhar crescendo assustado pela imensidão descoberta na estranheza das coisas, virado para dentro no fascínio de uma imensidão escondida maior, mais estranha. Sou da escrita desde o bloqueio da sociabilidade, certa prostração da fala perante quase todas as conversas, afastadas de mim nos ares ventosos da sua vacuidade ou entranhadas no mar opaco de uma inacessível densidade. Entre a insignificância e o desperdício, desde sempre me refugiei, diferente, na escrita, mergulho apaixonado na minha própria intimidade labiríntica, interlocutor de mim mesmo numa ironia sem fim. Uma fuga.
Sou da escrita. Desde sempre, sou da escrita. Sangrei para gavetas pacientes, durante décadas, o fluido de todas as feridas do mundo, observadas ou sofridas, estigmatizadas ou auto-infligidas. E, em todos os sangramentos, calei-me ao rodar da chave sobre as páginas cicatrizadas. Um dia, porém, as gavetas, porventura fartas, regurgitaram a sua voracidade vampiresca no grito em que enfim me devolveram ao mundo, numa centelha de palavras esvoaçantes. E publiquei-me.
Sou da escrita. Continuo a ser da escrita, mesmo se o meu silêncio nela se transforma em comunicação através dela, mesmo se, de eremitério, ela se transforma em convivência. Encontro agora, neste exercício de dizer-me a mim mesmo, um sentido maior de dizer-me ao outro, de dizer o outro a si próprio quando ele a si próprio se lê em tudo o que em silêncio me escrevo.
Sou da escrita. Serei sempre da escrita, único meio de imortalidade na cidade dos homens. Porque as palavras ditas expiram quase todas no próprio ato de dizê-las, sepultadas nos ouvidos que apressadamente as esquecem. Serei sempre da escrita, não porque seguirei escrevendo, mas porque já me escrevi todo até onde pude, nas linhas publicadas e nos rascunhos que as gavetas ainda ruminam. E continuarei a escrever, não para dizer-me mais, mas na busca de dizer-me melhor, eterno aprendiz de feiticeiro manejando as palavras como ingredientes mágicos.
Sou da escrita. Para sempre.

domingo, 11 de novembro de 2018

Texto nonagésimo quinto


Vou voltar para casa!
Há dois anos que conto os dias que me arrancaram às leivas serranas e me arrastaram para Tancos, onde um apregoado «milagre» treinou as minhas mãos afeitas à sachola para as engatilhar na luisinha que os bifes me entregaram quando aqui desembarquei. Depois arrastaram-me por estas Franças adentro, mai-los meus camaradas, até nos porem a cavar as trincheiras onde nos emparedaram, a morte zumbida em tiros sobre as nossas cabeças igual à que rastejava aos nossos pés, nos ratos esfaimados que nos roíam a sola gasta das botas encharcadas, t’arrenego! Só mais rápida, por isso muitos dos nossos preferiram rasgar fardas e pele no arame farpado e aventurar-se pelo campo aberto, onde haviam de acabar tombados de um susto na lama da terra de ninguém, a mesma da vala imunda onde definhávamos lentos, à míngua de comida, calor e carinho dos nossos.
Sulcos na terra só antes conhecia os do meu arado, onde a gente botava a semente que havia de morrer para as nossas vidas. Mas aprendi nas trincheiras que há covas abertas como valas comuns a perder de vista, onde somos semeados para uma morte que não aproveita a ninguém. De um lado e de outro, é indiferente, pois é pelo fruto que se conhece a árvore e pela planta que se avalia a semente e nada resta para ver quando acabamos todos mastigados pela mesma terra, retalhada por obuses que a ensurdecem para a diferença das línguas.
Posso falar disto agora porque vou voltar para casa. O pesadelo acabou e os senhores da guerra decidiram a paz. Os dois lados encontraram-se, não a surdir das valas de armas na mão a cuspir morte, mas entrando para uma carruagem de comboio empunhando canetas para se comprometerem por escrito. Há quem diga que a razão de ser num comboio foi para manter a localização secreta, outros afirmam que foi para que todos se sentissem em terreno neutro, como a terra de ninguém onde se misturam cadáveres de todas as fardas. Os senhores da guerra decidiram a paz, mas eu, humilde português desconfiado, interrogo-me sobre a seriedade de tal decisão. Estaria o comboio parado na hora de firmar a escrita das convicções? Ou terão as sacudidelas do vagão feito as assinaturas tremer de falsas? E a tinta permanente que pingou dos aparos titulares, não virá a ser apagada no futuro pela malícia dos herdeiros?
Não me importa isso agora, que vou voltar para casa. O pesadelo acabou e eu sobrevivi, muito graças às curvas da sorte e à bênção de Deus, um pouco também à minha desajeitada perícia de camponês a imitar soldado, bem haja eu. Se calhar foi tudo obra da Senhora vestida de luz que apareceu lá pelas serras do meu torrão e cuja proteção todos os meus esfolaram os joelhos a suplicar. A todos agradeço e o que mais quero é regressar, sentar-me à lareira e aquecer os pés até queimar neles a lembrança da lama das trincheiras, roer a boa da côdea caseira que me faça esquecer os enlatados com cheiro de fábrica. E depois coser os dedos à sachola até despegar deles os tiques de ceifar vidas que a luisinha me ensinou.
Vou voltar para casa e quero apagar de mim estes dois anos de vida que a guerra me tirou na morte a que me fez convidado. Bem tive que me esforçar para não aceitar o convite, cáspite!...
Vou voltar para casa e limpar a memória. Mas a data de hoje, 11 de novembro, essa nunca hei de esquecê-la. Nem daqui a cem anos!...

domingo, 4 de novembro de 2018

Texto nonagésimo quarto



Terá sido a música, melodia singela orquestrada de simplicidade, que me envolveu num veludo harmónico? Ou terá sido a letra, uma ousadia de palavras a acender fachos de profecia nos meus vinte anos deslumbrados? Ou talvez fosse apenas a mulher, sentada ao piano e numa solidão desafiadora, as mãos espalhando energia criativa pelas teclas, o olhar gritando a tanta gente o silêncio que a sua voz entoava docemente.
Naquela noite de festival, em 1984, ouvir Silêncio e Tanta Gente foi para mim uma experiência indizível, um abraço musical aconchegante e desbravador, como esfregar a lâmpada de Aladino e ver sair o génio poderoso e sensível da Arte plena. Imensa no seu minimalismo, eterna no seu tempo medido.
Inesquecível e imortal, a canção. Inesquecível e imortal a sua criadora. Obrigado, Maria Guinot: por ser e por ter existido!

domingo, 28 de outubro de 2018

Texto nonagésimo terceiro


Escrever, escrever, escrever… porque só assim se aprende a escrever melhor. Trabalhar a escrita incessantemente, carpinteirar a matéria-prima das ideias com as ferramentas da técnica, fazer brotar a inspiração e esgotar a transpiração.
E insistir na escrita.
Escrever, escrever, escrever… porque só assim se aprende a escrever melhor.
Escreve-se como se vive: gasta-se tudo em cada coisa, a energia toda em cada ação ou encadeamento, o léxico inteiro em cada frase ou sequência delas. E, como na vida, ganha-se no retorno, acrescenta-se o que somos na proporção do que nos damos, cresce a qualidade da escrita na prodigalidade com que nos esgotamos no seu exercício.
E insiste-se na escrita. Reinveste-se o capital acumulado.
Escrever, escrever, escrever… porque só assim se aprende a escrever melhor!
É este o desafio da «Oficina da Palavra», o curso de escrita criativa onde estarei para orientar e acompanhar, partilhar o que sei e aprender tudo o resto.
E insistir na escrita, sempre. Dizer-me todo em palavras, buscando a Palavra que enfim me diga.
Escrever, escrever, escrever… porque só assim se aprende a escrever melhor!
Vamos a isso?...

domingo, 14 de outubro de 2018

Dizer a imagem 15 - Um ano depois



Cristalizadas na ferrugem, as lágrimas acordam. O ferro indestrutível diz a dor que não se apaga. A destruição voraz faz-se recordar, teimosa no monumento triunfante, implacável no vestígio da tortura. E todas as vidas decapitadas sangram-nos ainda no inferno das consciências.
Mas, do silêncio da terra, uma frescura reverdece. No ventre primordial germina uma ressurreição obstinada. A Vida declara-se, colora os escombros, envolve o ícone de morte numa moldura de recomeço. E a memória da centelha devoradora tem de conviver com a visão do arbusto da promessa, sarça ardente profética.
O mundo não é uma sala de espera terminal, mas uma planície de esperança (re)construída. Um ano depois, a Vida continua!

Fotografia de @placeswithlovee

domingo, 30 de setembro de 2018

Texto nonagésimo segundo

Escrevo porque sinto. Nas emoções entrechocadas sucessivas germina o impulso de todas as ideias possíveis. E das impossíveis também, movidas pela urgência da sua própria impossibilidade.
Escrevo porque calo. No silêncio da minha distância introvertida constrói-se a teia transparente de uma eloquência trabalhada, inequívoca. Inequívoca porque trabalhada?...
Escrevo porque sonho. No devaneio da esferográfica pela planície das folhas brancas (ou no bailado em pontas dos dedos frenéticos sobre o teclado) cabem todas as paisagens oníricas da imaginação. E da esperança, que é o melhor dos sonhos.
Escrevo porque sou. Na existência que carrego há uma essência irreprimível de palavras, busca multiforme e contínua da Palavra que me faz.
Escrevo, apenas escrevo. Só.

domingo, 2 de setembro de 2018

Conversando... sobre o que se lê.


Páginas que me absorveram nos últimos meses. Leituras e releituras que apetecem, pela riqueza e diversidade de tempos, conteúdos, estilos e intenções. Marcel Proust e um retrato de época numa renda de bilros de sensibilidades e vícios. Nathaniel Hawthorne e a força das personagens na narrativa de tudo o que não se conta. José Saramago e a arquitetura literária erguida na argamassa consistente de uma escrita própria. Henri Charrière e um testemunho misto de sobrevivência orgulhosa, fraqueza assumida e perversidade denunciada (e autenticidade polémica…?).
Eis alguma da literatura que me ocupou ultimamente, que ainda trago em mim. E que me desafia à escrita. Urge-me.
Estará para breve um novo livro?…